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‘Eu não ataco o governo falando sobre uma garotinha’

Primeira diretora de cinema saudita critica a opressão às mulheres no seu país com o filme 'Wadja', que estreou nesta semana no Festival de Veneza 2012

Por Gabriela Loureiro
2 set 2012, 08h33

Nesta semana, estreou no Festival de Cinema de Veneza 2012 o primeiro longa-metragem filmado inteiramente na Arábia Saudita e com a participação exclusiva de atores locais. O filme, Wadjda, conta a história de uma menina de 11 anos que cresce num subúrbio com o desejo de andar de bicicleta, o que é proibido para mulheres. Tão obstinada quanto a menina é a diretora do filme, Haifaa Al Mansour – a primeira cineasta de origem saudita. Haifaa não podia trabalhar em público, então dirigiu o filme de uma van. Como a indústria cinematográfica não existe no país, o filme, co-produzido pela Alemanha, não entrará em cartaz na Arábia Saudita. Mas isso não desanima Haifaa. Para ela, a arte é uma forma eficaz, ainda que discreta, de lutar pelas liberdades civis.

A estreia de Wadjda coincide com a recente controvérsia das Olimpíadas de Londres, no mês passado. Pela primeira vez nos 116 anos das Olimpíadas, a Arábia Saudita foi representada por duas mulheres – Wodjan Ali Seraj Abdulrahim Shahrkhani, no judô, e Sarah Attar nos 800m. Elas quase foram proibidas de participar porque o país exigia que elas competissem usando o véu islâmico, o que, por fim, foi concedido.

Wodjan foi eliminada na primeira luta, e Sarah ficou em último lugar, mas elas foram ovacionadas. A dura realidade das atletas no país islâmico que mais limita a liberdade das mulheres voltou a estampar páginas de jornais internacionais quando Wodjan voltou para casa sob o apelido de ‘prostituta olímpica’.

Wodjan, Sarah e Haifaa têm muito mais em comum do que o seu país de origem. Elas são exemplos de sauditas dispostas a burlar a barreira da discriminação de gênero sob o manto do fundamentalismo islâmico. Confira a entrevista com a cineasta.

O que a motivou a abandonar um emprego estável em uma companhia de petróleo para se tornar a primeira mulher cineasta da Arábia Saudita? Eu não larguei meu emprego imediatamente, eu continuei trabalhando porque fazer filmes independentes não dá muito dinheiro. Depois eu decidi que se eu quisesse ser uma diretora de cinema bem sucedida eu teria que dar minha total atenção aos filmes, e então eu realmente me entreguei ao cinema. Fiz mestrado em direção de cinema em Sidnei, escrevi meu roteiro, produzi e dirigi meu filme. E ele foi para Veneza! Eu não planejei ser a primeira diretora de cinema da Arábia Saudita, apenas aconteceu.

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Como o estado controla as mulheres na Arábia Saudita, um país que interpreta de maneira muito estrita a lei islâmica? É isso mesmo. A questão na Arábia Saudita é a interpretação da sharia, uma interpretação muito rígida, que torna impossível para as mulheres até mesmo andar de bicicleta ou dirigir carros – o que não acontece em nenhou outro país muçulmano do mundo. Mas acho que isso está mudando. O país está se abrindo aos poucos, lentamente, mas de forma linear. Nós não aceitamos mais ser isolados do mundo, porque temos acesso à internet e TV a cabo, especialmente os mais jovens. Eles se sentem parte do mundo, e é cada vez mais difícil obrigá-los a aceitar esses valores que não são modernos, e que não encontram eco na sua experiêncai do cotidiano.

Sua família apoia você? Eu tenho um background bem liberal. Apesar de meus pais serem de uma cidade pequena na Arábia Saudita, eles sempre tiveram um senso de que o mundo era maior que sua aldeia, acreditavam que seus filhos precisavam ter uma boa educação e conhecer outros lugares, sair do país. Toda a minha família me apoia muito. Eu venho de uma família com mulheres muito fortes, minha mãe é muito forte, então ela serviu de modelo para mim.

Cinemas são proibidos na Arábia Saudita. Como você reage ao fato de que seus compatriotas não poderão assistir à primeira produção filmada inteiramente no país? Eu fico um pouco triste, sim, mas acho que é bom sempre continuar fazendo filmes em vez de ficar deprimida porque meu povo não verá meu filme. Se o filme rodar o mundo e trouxer orgulho ao país, vai mostrar que um filme é mais do que um pedaço de celulóide. Muitas pessoas na Arábia Saudita pensam que a indústria do cinema têm objetivos escusos. Espero que o filme ofereça uma nova perspectiva sobre o cinema no meu país, que desperte nos sauditas o desejo de ter cinemas que possam frequentar. Eu odeio me sentir desamparada. Prefiro ver o lado positivo das coisas.

Wadja conta a história de uma menina que sonha em ter uma bicicleta verde
Wadja conta a história de uma menina que sonha em ter uma bicicleta verde (VEJA)
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Você tem medo de ir presa por causa de seus filmes? Eu tento não abordar temas que são muito controversos, ou algo que seja absolutamente proibido. Eu não ataco diretamente o governo falando sobre liberdade das mulheres. Dê ao tema o rosto de uma menininha, faça disso uma história, com entretenimento, e ainda assim mantenha a linha do seu discurso, teça um argumento intelectual válido em um contexto humano. Eu não ataco o governo falando de uma garotinha. Isso não é contra o Islã ou contra o regime, é apenas a história de uma menina. Acho que esta é a melhor forma de fazer mudanças. Se você é expulso do sistema, você nunca terá voz e influência no país.

Você já recebeu mensagens de ódio por causa do seu trabalho? Sim, isso é muito comum, mas não tem problema. Significa que as pessoas me ouvem, e eu não acho que elas levem as suas ameaças tão a sério. Os meus filmes são controversos na Arábia Saudita, mas eles não são contra Deus, algo que me colocaria na prisão. É sobre mulheres. Vamos falar sobre mulheres andado de bicicleta, um tema que é leve e pesado ao mesmo tempo.

Como você avalia a primeira participação de mulheres nas Olimpíadas representando a Arábia Saudita? Achei incrível a participação delas, é uma ótima época para ser mulher na Arábia Saudita. É uma época muito empolgante para elas. As mulheres devem procurar fazer essas coisas, porque isso vai mudar a história do país.

Como você espera que Wadjda impacte a Arábia Saudita? Eu quero que as pessoas curtam os meus filmes, quero que elas se divirtam e vejam o filme como uma forma de entretenimento, e quero que sejam mais tolerantes também. Apenas que se divirtam. É ótimo somente fazer um filme e esperar que as pessoas gostem dele. Eu não sou uma pessoa com uma ideologia forte, eu sou uma artista e quero que as pessoas apreciem o meu trabalho. Filmes divertidos fazem com que a sociedade seja mais tolerante e calma. Quero que as pessoas sorriam mais na Arábia Saudita.

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