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Trump e a sombra do impeachment

O presidente americano enfim cai na rede do pedido de afastamento. Mas isso é só o começo

Por Amanda Péchy e Caio Mattos
Atualizado em 30 jul 2020, 19h38 - Publicado em 27 set 2019, 06h55

Foi em plena Assembleia-­Geral das Nações Unidas, com a maior parte dos líderes mundiais em Nova York, que o pedido de impeachment tantas vezes aventado, mas nunca concretizado, enfim caiu sobre a cabeça do presidente americano Donald Trump. O escândalo que disparou o torpedo envolve um telefonema de Trump ao recém-­empossado presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, no fim de julho, em que o americano falou o que não devia.

O conteúdo da ligação veio à tona agora — tamanha foi a pressão que a própria Casa Branca divulgou uma transcrição. Lá se ouve Trump pedir a Zelensky, em seis momentos da conversa, o “grande favor” de escavar podres que envolvessem seu maior adversário na eleição do ano que vem, Joe Biden, e o filho dele, Hunter, que por um tempo bateu ponto na diretoria de uma das empresas enredadas na extraordinariamente corrupta rede de poderosos da Ucrânia. Detalhe: dias antes Trump havia bloqueado a entrega de uma ajuda militar de 391 milhões de dólares ao país. “Não houve toma lá dá cá no telefonema. Não fiz nada de errado”, afirmou o mandachuva americano em uma entrevista ao lado de Zelensky, organizada às pressas em Nova York. “Não fui pressionado”, corroborou, em inglês macarrônico, o ex-comediante que virou presidente. Mas o estrago estava feito: “Rece­bi informação de múltiplos oficiais do governo de que o presidente dos Estados Unidos está usando o poder de seu cargo para solicitar interferência de um país estrangeiro na eleição americana de 2020”, escreveu o informante do caso, em uma carta que motivou o impeachment, divulgada na quinta-feira 26.

A munição contra Biden que Trump quer que o colega da Ucrânia lhe entregue — em nome de supostos altos interesses nacionais, nada a ver com mera picuinha eleitoral, claro — está relacionada a uma intervenção do então vice-­presidente naquele país justamente na época em que o filho Hunter fazia parte da junta diretora de uma empresa ucraniana cujo dono era investigado por enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro. Em 2014, Biden sênior, na condição de enviado do governo dos Estados Unidos para dar apoio ao governo de Kiev, ameaçado pela vizinha Rússia, pressionou pela substituição do procurador-geral do país, Viktor Shokin, que acabou demitido. É fato que Shokin tinha laços estreitos com os corruptos que investigava, e seu afastamento foi amplamente celebrado. Mas também é fato que a investigação sobre o patrão de Hunter Biden foi interrompida. É aí que moram as expectativas de Trump: alguma Biden pai e filho devem ter aprontado nesse rolo todo.

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Ocorre que em país algum o presidente pode usar o cargo para inflar sua campanha política dessa forma. Além de pedir o favor a Zelensky, Trump insis­tiu para que ele recebesse seu advo­gado pessoal, Rudy Giuliani, e trocasse figurinhas com o secretário de Justiça, William Barr — que não tem jurisdição alguma sobre o assunto. Um dos fiscais encarregados de monitorar os telefonemas oficiais da Presidência arrepiou-se com os termos da conversa e tentou levar o caso ao Congresso. Foi barrado. A história vazou e sacudiu Washington. Na terça 24 a presidente da Câmara dos Deputados, a democrata Nancy Pelosi, anunciou a abertura do processo de impeachment. “(Trump) precisa ser responsabilizado. Ninguém está acima da lei”, declarou.

BERLINDA – Biden: intervenção na Ucrânia foi elogiada, mas ajudou o filho (Melina Mara/The Washington Post/Getty Images)

A Constituição dos Estados Unidos diz que um presidente pode ser afastado se ficar provado que cometeu “traição, suborno, crime grave ou contravenção” (veja o passo a passo do processo no quadro). Trump, que já era investigado por supostos desvios de conduta em seis comissões da Câmara, corre o risco de se tornar o terceiro mandatário americano a ser submetido ao rolo compressor do impeachment — os outros foram Andrew Johnson, em 1868, e Bill Clinton, em 1998, ambos liberados para seguir na Casa Branca na última etapa do processo, no plenário do Senado. Richard Nixon, em 1974, estava à beira do precipício, mas renunciou antes da degola. Pelosi relutou muito em abrir o processo contra Trump, preocupada com os efeitos na campanha eleitoral. Faz sentido. O Senado republicano pode nem receber um pedido de impeachment da Câmara. Mas, se aceitar, é provável que a maioria republicana o derrube na votação final e o presidente ganhe mais força ainda na trajetória para a reeleição.

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Por outro lado, deixar Trump exposto pode mobilizar os democratas. “É possível que a base do partido se sinta mais estimulada a ir às urnas”, diz Thomas Whalen, cientista político da Universidade de Boston. Nos Estados Unidos, onde o voto não é obrigatório, cerca de 60% dos 230 milhões de eleitores compareceram nas quatro últimas eleições. Mas, enquanto os republicanos mantiveram firmes seus 60 milhões de votos, os democratas perderam quase 10 milhões. “Também pode acontecer de Trump perder votos na parcela do eleitorado que fica em cima do muro”, acrescenta Whalen.

Eleição é a mola que move os políticos americanos desde o dia 1 do governo Trump, que rachou o país no meio. Enquanto no Partido Democrata se embolam dezenas de pré-candidatos, dos quais três se atropelam na dianteira, o presidente segue impávido na cruzada pela reeleição. Neste momento, ele perde por pelo menos 6 pontos para qualquer um dos democratas (além de Biden, concorrem os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren), o que não é anormal. Mas já conta com 70 milhões de dólares para a reeleição e, desde o início do governo, participou de sessenta comícios. “Seus discursos de improviso reforçam a divisão política”, diz Leonard Wantchekon, cientista político da Universidade de Princeton. O processo de impeachment certamente vai embaralhar ainda mais as projeções. Resta ver quem ganhará com isso.

Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654

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