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Cem anos de diplomacia: como Kissinger moldou a 2ª metade do século XX

O diplomata marcou a influência e a mão pesada da política internacional americana no período — postura que ainda hoje ecoa

Por Fábio Altman Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Ricardo Ferraz Atualizado em 1 dez 2023, 09h54 - Publicado em 1 dez 2023, 06h00

Há, na história da humanidade, personagens que parecem resumir a trajetória de seu tempo. O diplomata americano Henry Kissinger moldou a segunda metade do século XX, o mundo embebido de Guerra Fria que brotou das duas guerras mundiais. Nos anos 1970, sobretudo, como secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, ele costurou o delicado equilíbrio entre Estados Unidos e União Soviética. Convenceu a China comunista a se abrir para a economia de mercado. Foi um dos pilares das sístoles e diástoles no Vietnã, que resultaria em derrocada moral. Alimentou as ditaduras militares na América do Sul.

Ao morrer, na quarta-feira, 29 de novembro, aos 100 anos, deixou um legado indelével nas relações internacionais. Por trás dos óculos de lentes grossas, do sotaque carregado de quem chegou aos Estados Unidos apenas na adolescência, em 1938, fugindo da Alemanha nazista, do humor incisivo e do sorriso largo — emoldurados por uma voz grave e rouca — havia um personagem amado e odiado. O nome do jogo: a realpolitik, o pragmatismo a todo custo, e às favas os escrúpulos. Charmoso, ocupava a um só tempo as páginas dos tabloides populares e os livros de profunda análise geopolítica. Uma anedota de Washington resumia seu modo de trabalho: ostentava na vida pública, entre flashes e festas, para ofuscar o que fazia na intimidade das conversas ao pé de ouvido, nos salões do poder.

AMIGOS - Ao lado de Richard Nixon: fundamental na aproximação com a China
AMIGOS - Ao lado de Richard Nixon: fundamental na aproximação com a China (AP/.)

Levado pelas mãos de Richard Nixon para a Casa Branca, como conselheiro de segurança nacional, depois de se destacar como jovem professor de Harvard, Kissinger alçou voo ao alinhavar as reuniões secretas com Pequim — em nome das relações comerciais, e vê-se hoje que tinha razão —, mas também com a intenção de provocar fissuras no bloco vermelho. Numa brecha de crise entre a China e a URSS, aproximou-se de Mao Tsé-tung. A estratégia permitiu que os Estados Unidos abrissem interlocução com o Kremlin para tratar de acordos em torno de armas nucleares e para negociar a paz no Vietnã, onde os americanos mantinham tropas desde 1965. As negociações que selariam o cessar-fogo definitivo lhe renderam o Prêmio Nobel da Paz, em 1973, ao lado do vietnamita do norte Le Duc Tho, que negou a láurea.

Frasista incorrigível, repetia uma de suas máximas indeléveis: “Se você não sabe para onde vai, todos os caminhos o levarão a lugar nenhum”. Não por acaso, por saber os caminhos a trilhar, amealhou inimizades, que nunca deixaram de reconhecer a inteligência inigualável. Foi severamente criticado pelos defensores dos direitos humanos em decorrência da maneira implacável pela qual lidava com países de menor relevância no tabuleiro global, como os do chamado Cone Sul. Em meados de setembro de 1973, ele travou um diálogo telefônico com Nixon que soava como passeio no parque, mas envolvia desfaçatez política em torno do sangrento golpe militar de Augusto Pinochet, que depusera o socialista Salvador Allende. “Aquilo no Chile está se consolidando”, disse Kissinger, segundo registros gravados na Casa Branca, depois divulgados. “No tempo de Einsenhower (presidente entre 1953 e 1961), seríamos heróis”. Nixon retrucou: “Mas, nesse caso, nossa mão não aparece”. Ao que o diplomata respondeu: “Nós não fizemos. Quero dizer, nós ajudamos”.

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'REALPOLITIK' - Com Pinochet: interesses americanos acima da democracia
‘REALPOLITIK’ - Com Pinochet: interesses americanos acima da democracia (Bettmann Archive/Getty Images)

Pouco tempo depois, em abril de 1974, revelam documentos descobertos pelo historiador Matias Spektor, da FGV, um memorando preparado pelo então diretor da CIA, William Colby, enviado a Kissinger, descortinava a autorização do presidente brasileiro Ernesto Geisel para executar opositores do regime militar. Kissinger não piscou, a seu estilo. Seguia um mantra, em toada irônica: “O ilegal fazemos imediatamente. O inconstitucional demora um pouco mais”.

Nos últimos anos, dedicou-se a escrever livros e artigos. Nunca parou de pensar o vaivém do mundo. Intuiu que a Rússia de Putin invadiria a Ucrânia. Em julho deste ano, voltou a Pequim, com pompa — e então, o Kissinger centenário deu as mãos ao jovem de cinco décadas atrás, ao dizer: “O destino da humanidade depende do entendimento entre Pequim e Washington”. O principal nome da diplomacia oriental, Wang Yi, ao ouvir a tirada, não se conteve e soltou um comentário revelador dos feitos do americano: “A política dos EUA em relação à China precisa de uma sabedoria diplomática ao estilo de Kissinger e de uma coragem política ao estilo de Nixon”. A morte de Kissinger é o adeus a um personagem apaixonado pelo que fazia. Assim, em suas palavras: “O poder é o afrodisíaco definitivo”.

Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870

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