Os dados são simplesmente dramáticos. A Pesquisa Nacional das Condições de Vida, conduzida pelas três mais reputadas universidades da Venezuela, mostra que a pobreza atinge hoje 94,5% da população do país. Uma parcela considerável desse contingente, cerca de três quartos, habita a zona da miséria, onde há fome e o único objetivo é a sobrevivência. Somente entre 2019 e 2020, a multidão de pobres se expandiu espantosos 91%. Para piorar, não há sinais de melhora no horizonte, em um país atrelado à crise econômica e social — agravada pela pandemia de Covid-19 — e amarrado a uma ditadura que finge ser outra coisa. O governo de Nicolás Maduro, o fantoche que sucedeu a Hugo Chávez em 2013, tem algumas peculiaridades: é um populismo sem povo, perpetuado por eleições sem eleitores. No ano passado, houve quase 70% de abstenção no pleito legislativo, que manteve em pé o bolivarianismo, agora travestido de “madurismo”. Em novembro, haverá novas eleições regionais e locais, com recorrentes denúncias de fraudes já iluminadas pela oposição.
A Venezuela, para além de seu próprio destino trágico, é personagem nada oculto do Brasil polarizado. Apesar das evidentes afrontas à democracia, a esquerda liderada pelo PT continua a fazer vistas grossas ao ambiente apodrecido da nação vizinha. Recentemente, Lula apareceu nas redes sociais segurando uma foto em que ele está ao lado de Maduro com uma exclamação: “Tamos juntos!”. O caos atual, alimentado há anos, parece não convencer a esquerda latino-americana de que a defesa do regime venezuelano é um acinte. Curiosamente, o outro lado do espectro ideológico, a direita radical, também precisa olhar com mais atenção o exemplo venezuelano. Até pouco tempo atrás, o autoritarismo do regime bolivariano parecia inspirar o presidente Jair Bolsonaro, que, na ânsia de demonstrar força, organizava manifestações para minar nossas instituições e questionava o sistema eleitoral brasileiro. Relembre-se o que disse o então deputado em 1999 sobre Hugo Chávez, que se cercou de militares, apostou num modelo sem nenhuma responsabilidade fiscal e levou o país à bancarrota: “Chávez é uma esperança para a América Latina e gostaria muito que essa filosofia chegasse ao Brasil”. “Acho ele ímpar. Pretendo ir à Venezuela e tentar conhecê-lo”, comentou o então parlamentar.
Hoje, poucos querem pousar em Caracas. Na verdade, o fluxo é oposto. O cotidiano de fome e a falta de liberdade têm empurrado os venezuelanos para fora do país. Em 2020, segundo estatística da ONU, 5,6 milhões de cidadãos, dos 28 milhões da população total, tinham pedido abrigo principalmente na América Latina. Ou seja: uma em cada cinco pessoas foi embora. Para entender a vida de quem ficou, VEJA enviou para a Venezuela a editora-executiva Monica Weinberg. Com início na página 52, o relato de Monica traz, entre outras histórias impactantes, um caso que revela toda a ruína de um povo. Em maio de 2018, em outra reportagem, ela esteve na casa da família Cadiz, num povoado a duas horas de Caracas. Ali, encontrou Luiz, o filho do meio de uma prole de cinco. Ele tinha então 14 anos e, apesar de maltratado pela escassez de tudo, cultivava o gosto pela leitura herdado dos pais, que, em tempos bem menos minguados, eram donos de livraria. Perguntado sobre como se via mais adiante em sua vida, o garoto respondeu com os olhos tristes: “Quero que eu e minha família possamos comer carne”. Questionado novamente agora, Luiz, com seus 18 anos, foi forçado pelas circunstâncias a adaptar as expectativas. “Quero comer qualquer coisa, sem me preocupar se o prato estará vazio.” É absolutamente inaceitável que os anseios de Luiz tenham se reduzido a quase nada, como bicho — um alerta que vale para a Venezuela, mas que deve ser tratado como ponto de atenção também para o Brasil. Uma democracia frágil e opções econômicas equivocadas podem, sim, levar um país ao desastre. Que isso nunca aconteça por aqui.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762