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Atolada em crise econômica, Cristina Kirchner tenta ganhar com o futebol

Depois de estatizar o futebol profissional, governo gasta muito dinheiro público para tentar alavancar a desgastada imagem da presidente argentina

Por Diego Braga Norte 16 fev 2014, 09h11

O uso político do futebol não é algo novo entre governos populistas, mas poucos chefes de Estado chegaram ao grau de interferência alcançado por Cristina Kirchner, a dona da bola no futebol argentino. Imagine ficar refém de uma única equipe de narradores e comentaristas, que inserem nas jogadas palavras de exaltação ao governo, a ponto de existir uma figura conhecida como ‘locutor militante’. Pois é o que os torcedores de Lionel Messi enfrentam para assistir aos principais jogos no país.

O programa federal Futebol para Todos (FTP), criado em 2009, injeta cada vez mais dinheiro público no esporte profissional. Os recursos que receberá em 2014, segundo a previsão orçamentária argentina, devem ultrapassar os 540 milhões de reais, valor 17% superior ao do ano passado. Recentemente, a Casa Rosada informou que comprou a exclusividade dos direitos de transmissão da Copa do Mundo do Brasil em uma operação que chamou a atenção mais pelo lado oculto – o governo não revelou os valores – do que pelo estardalhaço do anúncio. Para enfrentar a profunda crise econômica, a insatisfação crescente da sociedade e, de quebra, alavancar sua popularidade, Cristina se apoia em um dos poucos bens argentinos que ainda conta com respaldo popular: o futebol. Messi que se cuide.

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Campeonato Nacional – No último final de semana, teve início o campeonato argentino de futebol e, junto com o torneio, o programa FTP foi oficialmente relançado. A expectativa era que o chefe de gabinete de Cristina, Jorge Capitanich – escolhido a dedo para relançar o projeto -, anunciasse alterações no programa, sobretudo na equação financeira que sustenta o FTP. Enquanto Capitanich e a principal produtora do programa, Ideas del Sur, gostariam da inclusão de propagandas privadas durante as transmissões (o governo aliviaria parte dos gastos e a produtora lucraria com uma porcentagem das cotas publicitárias que seriam negociadas), o grupo La Cámpora – liderado por Máximo Kirchner, filho da presidente – defendia a manutenção do FTP nos moldes como vinha sendo feito, apenas com publicidade estatal. A contenda foi vencida por Máximo e seu movimento – uma espécie de guarda pretoriana de Cristina, formada por jovens que defendem arduamente o governo, chegando inclusive às vias de fato, ameaçando fisicamente jornalistas e brigando com manifestantes. Segundo a avaliação da imprensa argentina, a disputa pública desgastou desnecessariamente Jorge Capitanich, que saiu da apresentação menor do que entrou.

Cristina, AFA e torcida: relações escusas

Cristina Kirchner exibe uma camisa da seleção argentina doada por executivos da AFA ao lado de Diego Maradona durante evento em 2009
Cristina Kirchner exibe uma camisa da seleção argentina doada por executivos da AFA ao lado de Diego Maradona durante evento em 2009 (VEJA)

Para estatizar o futebol do país, o governo mantém relações suspeitas com a Associação de Futebol Argentino (AFA), clubes e até torcidas organizadas – chamadas de barra bravas pelo hermanos. Em 1979, Julio Grondona foi alçado ao posto de presidente da AFA pelas mãos da ditadura, e desde então chefia da entidade. Acumulando denúncias e escândalos, “Grondona manteve relações escusas com todos os governos, ditatoriais e peronistas. Governos passam, Grondona fica” – explica o professor Rojo, autor de um estudo avaliando o uso político da Copa de 1978, disputada na Argentina, pelos ditadores que controlavam o país.

Por meio de verbas públicas, Cristina ‘convence’ a AFA a realizar seus desejos. Se alguns pedidos beiram o ridículo, como nomear a liga argentina de futebol de ‘Eva Perón’, outros claramente misturam interesses públicos e políticos – como o fato de agendar os principais jogos da rodada de domingo para o mesmo horário do programa Periodismo para Todos, conduzido pelo jornalista Jorge Lanata, critico ferrenho do governo.

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O relacionamento do governo com as barra bravas vai além. Gustavo Grabia, colunista do jornal Olé, o maior diário esportivo da Argentina, e autor do livro La Doce – A Explosiva História da Torcida Organizada Mais Temida do Mundo (Panda Books), revela que o governo financia uma ONG de torcedores controlada por líderes das principais barra bravas do país. Em troca, os torcedores trabalham pelo partido do governo reprimindo opositores, passeatas e colocando faixas a favor de políticos nos estádios.

Chefes de torcida envolvidos em delitos contam com uma firme proteção do Poder Executivo, destacou o jornal La Nación em editorial publicado em janeiro. Em escutas telefônicas ordenadas pela Justiça em uma investigação de fraude na revenda de ingressos de futebol, um chefe barra brava diz que “enquanto Cristina Kirchner estiver no poder, me asseguraram que nada vai acontecer comigo”.

Durante a Copa de 2010, na África do Sul, a imprensa argentina revelou que o governo havia pagado 232 passagens e hospedagens para torcedores de organizadas. Eles acabaram arrumando confusão e trinta foram deportados, literalmente expulsos da Copa.

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Justamente ele, que no início de janeiro também foi destacado para ganhar os holofotes durante o anúncio da aquisição dos direitos de transmissão dos 64 jogos da próxima Copa do Mundo – 32 deles ao vivo e 32 gravados. Além de gastar dinheiro público em uma operação que poderia ser bancada – com lucros – pelas emissoras privadas, Capitanich ainda revelou mais um pacote de benesses para os dilapidados clubes argentinos, que receberão mais uma “ajuda financeira” estatal no valor de 30 milhões de reais.

Aqui vale um parêntese. Capitanich é um dos principais nomes para suceder a presidente, que não conseguiu levar adiante no Congresso seu projeto de reeleições ‘ad aeternum, o que a deixará fora das eleições presidenciais de 2015 – se ela não lançar mão de nenhuma outra manobra até lá. O que ela já enfrenta desde já é a dificuldade para lançar um sucessor. “Ela gostaria de lançar seu filho, mas ele é mais inepto que a própria mãe”, diz Raúl Enrique Rojo, sociólogo argentino que leciona na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não há ainda um nome definido e esse é um motivo de angústia para Cristina”. Pretendentes em ocupar a Casa Rosada pela coligação Frente Para a Vitória (FPV), de Cristina, não faltam. Além de Capitanich e Máximo, também é possível apontar o deputado federal Martín Insaurralde, o senador Aníbal Fernández e o ministro do Interior, Florencio Randazzo. Cristina também deu muito espaço em seu gabinete para o ministro da Economia, Axel Kicillof, integrante do La Cámpora e arquiteto da estatização da petrolífera YPF, em 2012.

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Vitrine – A transmissão da Copa em emissoras estatais é mais um golpe populista de Cristina, garantindo audiência certa de suas propagandas oficiais. Afinal, amante do futebol, o público argentino acompanha em massa os torneios mundiais. A grande jogada de Cristina está na propaganda: todas as partidas televisionadas pelas redes estatais têm publicidade oficial antes, durante e depois dos jogos. E essa máquina de autoelogios custa caro. Em 2014, o orçamento argentino reservou 1,45 bilhão de reais para publicidade, sendo que quase um terço disso – 428 milhões de reais – será gasto apenas com as transmissões de futebol. E estamos falando da Argentina, país que deve fechar 2013 – os números finais ainda não saíram – com um déficit público acima de 4% do Produto Interno Bruto (PIB), totalizando um rombo fiscal de 33,4 bilhões de reais, segundo estimativas do mercado.

Desde 2009, quando a Argentina estatizou o futebol, tirando-o das mãos do grupo Clarín – inimigo público número um de Cristina -, por cerca de 212 milhões de reais, o gasto público com o esporte profissional aumentou 135%, totalizando cerca de 1,85 bilhão de reais em pouco mais de quatro anos do programa Futebol para Todos. E esse valor é referente apenas aos direitos de transmissão, pagos para a Associação de Futebol Argentino (AFA) e clubes, sem contabilizar outra montanha dinheiro gasto pela TV estatal para fazer a transmissão de todas, isso mesmo, todas as partidas do Campeonato Argentino das três primeiras divisões, as eliminatórias sul-americanas para a Copa e diversos torneios internacionais, como as Copas Libertadores e Mercosul. Agora, com a Copa garantida em suas emissoras estatais, Cristina tem bons motivos para engrossar a torcida por uma boa campanha da equipe de Messi e companhia. Quanto mais interesse a Copa despertar entre os argentinos, maior a exposição do seu governo.

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“A relação do governo argentino com o futebol tem clara dimensão populista e demagógica”, avalia Rojo. Para o consultor político argentino Carlos Fara, o futebol “é apenas mais um tema” na agenda política populista de Cristina. Ele acrescenta, no entanto, que “para o governo, essa agenda está acima de qualquer outra coisa”.

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