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Atiradores nos EUA e a responsabilidade de Trump

Dois novos massacres exacerbam as críticas ao presidente e à posse indiscriminada de armas. Mas o problema vai além disso

Por Kátia Mello
Atualizado em 12 ago 2019, 10h59 - Publicado em 9 ago 2019, 07h00

Uma praga dos tempos modernos que tem sua marca registrada cravada nos Estados Unidos — atiradores solitários disparando a esmo em locais cheios de gente — voltou a se manifestar, desta vez em dois massacres isolados entre si, separados por catorze horas e 2 600 quilômetros. Em El Paso, cidade do Texas na linha da fronteira com o México, clientes lotavam um Walmart na manhã de sábado quando, por volta das 11 horas, Patrick Crusius, 21 anos, chegou atirando; matou 22, feriu 26 e foi embora, mas acabou capturado e preso. Em Dayton, no Estado de Ohio, Connor Betts, 24 anos, saiu de um bar por volta de 1 e meia da madrugada de domingo, vestiu colete e capacete e disparou contra o entra e sai de restaurantes e casas noturnas no bairro boêmio da cidade; deixou nove mortos, entre eles a própria irmã, e 27 feridos antes de ser alvejado pela polícia. Como isso acontece no país mais poderoso do mundo? Não há resposta simples para essa questão.

O presidente Donald Trump, em um raro discurso ensaiado, declarou: “O país deve condenar, a uma só voz, o racismo, o preconceito e a supremacia branca” — esse último, um movimento que ele até recentemente mostrava não levar muito a sério. Também condenou a internet pelo “maléfico contágio” do ódio racial, os “sinistros e medonhos videogames” que alimentam “uma cultura que celebra a violência” e, por fim, as redes sociais, “uma perigosa via de radicalização de mentes perturbadas que perpetram atos insanos”. A oposição em peso, por sua vez, atribuiu a maior parte da responsabilidade ao próprio presidente, por disseminar insultos e acusações contra imigrantes e passar as últimas semanas vociferando no Twitter contra quatro deputadas não brancas especialmente estridentes nas críticas ao seu governo. O clima pré-eleitoral, com cada lado da disputa tratando de insuflar os ânimos em suas fileiras mais radicais, não ajuda em nada a pacificar o país dividido desde a eleição de Trump, o pai de todas as provocações. Mas o motor que move a praga matadora americana tem engrenagens que vão além da política.

MAIS CONTROLE – Manifestantes com fotos das vítimas na Times Square: de branco contra as armas e a violência (Nakamura/GettyImages/AFP)

Crusius, o assassino de El Paso, entrou no Walmart no sábado com um propósito: matar mexicanos. Pouco antes, postou uma espécie de manifesto em uma plataforma abertamente supremacista clamando contra a “invasão (um termo trumpista) hispânica do Texas”. Dos 680 000 habitantes da cidade, 80% têm origem hispânica, a denominação cunhada nos Estados Unidos para quem tem origens fincadas na América Latina, e diariamente centenas de mexicanos saem de Ciudad Juárez, do outro lado da fronteira, para fazer compras lá. Um dos pré-­candidatos democratas (há vinte no páreo), Beto O’Rourke, que nasceu em El Paso, lembrou que o presidente já chamou os imigrantes que cruzam ilegalmente a fronteira mexicana de “estupradores, narcotraficantes e criminosos”. Outro, Joe Biden, à frente nas pesquisas, acusou-o de “incentivar a supremacia branca”.

Os adeptos dessa maluquice proliferam, com ou sem Trump, nos desvãos da internet, em sites e grupos mais ou menos escondidos que disseminam ideias bizarras — e perigosas. Uma das mais populares no momento, pregada pelo escritor francês Renaud Camus, reza que está em andamento uma conspiração que extinguirá os brancos para pôr os negros em seu lugar. A teoria da “grande reposição” aparece citada no manifesto de Crusius, o matador que, segundo a polícia, não mostra um pingo de arrependimento. Pouquíssimo se sabe sobre Betts, o assassino de Dayton. Um amigo comentou que ele tinha ideias “de esquerda”. Uma ex-namorada contou que era esquisito e falava em matar muita gente. Um colega de escola relatou que carregava duas listas, uma de pessoas que ia assassinar e a outra de mulheres que ia estuprar — o que levantou suspeitas de que seja um “incel”, abreviatura em inglês de celibatário involuntário — jovens revoltados com sua incapacidade de ter um relacionamento amoroso. Em comum, os matadores em massa nos Estados Unidos são na maioria homens introvertidos, solitários e que se julgam tratados com inferioridade. Com ou sem Trump, não há o que dê jeito nisso.

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A cada novo tiroteio voltam os apelos por um maior controle de armas nos Estados Unidos — um tabu para a ala pró-Trump. A posse e o porte de armas é um direito explicitamente garantido pela segunda emenda da Constituição americana, e mudar esse estado de coisas é dificílimo — até porque esbarra nas sagradas liberdades individuais. O presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, que nunca fala sobre política de outros países — menos ainda do grande vizinho do Norte —, desta vez saiu de seu mutismo para sugerir “reflexão, análise e decisão para controlar a venda indiscriminada de armas”. Trump é contra, embora advogue (sem ênfase) a verificação mais rigorosa dos antecedentes da população armada. Com a sutileza habitual, chegou a propor em um tuíte uma lei que amarra esse controle e suas medidas anti-imigração. Pegou mal, e ele não voltou ao assunto.

Outra crítica recorrente a cada massacre é a fragilidade da prevenção do terrorismo doméstico nos Estados Unidos. De acordo com a fundação New America, com sede em Washington, o número de mortos pelos chamados lobos solitários só aumenta, sem que haja uma política específica de combate a esse tipo de crime. Uma pesquisa da ABC News contabilizou dezessete massacres com quatro mortos ou mais (sem contar o atirador) no país apenas neste ano — um a cada doze dias. Outro levantamento, do jornal Washington Post, mostra que, entre 2002 e 2017, os Estados Unidos tiveram 2,4 vezes mais ataques de terroristas domésticos do que de jihadistas. No entanto, dos 2,8 trilhões de dólares destinados ao combate ao terror desde o 11 de Setembro, menos de 1 milhão foi usado para detectar ações de americanos dentro dos Estados Unidos. “O FBI se concentra em monitorar muçulmanos, e não dá atenção às ameaças internas”, diz Mike German, pesquisador de terrorismo da Universidade de Nova York.

Na quarta-feira 7, Trump e Melania visitaram El Paso e Dayton. A oposição destacou as vaias e os protestos com que foram recebidos nas duas cidades, o que é verdade. O presidente, no Twitter de cada dia, gabou-se de ter sentido muito apoio “e até amor” da população, o que é verdade também. Passado o choque de 31 mortos por nada em um fim de semana, a política deve voltar ao centro do noticiário e a população seguirá sua vida. Até o próximo jovem desajustado munir-se de um fuzil e sair disparando sem sentido.

Publicado em VEJA de 14 de agosto de 2019, edição nº 2647

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