Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

As chamas da insatisfação: os protestos que emparedam Macron

A inaceitável morte de um jovem imigrante pela polícia expõe sua face brutal em atos que arrastam multidões e resvalam para a violência

Por Amanda Péchy 8 jul 2023, 08h00

“Você vai levar uma bala na cabeça.” A ameaça, capturada em vídeo que viralizou nas redes sociais, foi pronunciada por dois policiais que abordaram um jovem motorista em Nanterre, na periferia de Paris. Dito e feito: o carro começou a se mover e ele levou um tiro que atingiu seu peito. A morte de Nahel Merzouk, 17 anos, de descendência argelino-marroquina, desencadeou uma onda de protestos que desandou em baderna e vandalismo e trouxe à tona, mais uma vez, o antigo ressentimento com a polícia, acusada de racismo e uso excessivo de força contra a população pobre e imigrante. O governo mobilizou 45 000 agentes de segurança para conter os tumultos em diversas cidades, que deixaram em seu rastro de destruição veículos queimados, prédios grafitados e com vidros quebrados, 700 policiais feridos e mais de 3 400 presos. Enquanto o presidente Emmanuel Macron se reunia com prefeitos de municípios afetados, opositores à esquerda e à direita apontavam a crise como evidência de que o governo é incapaz tanto de garantir a segurança pública quanto de reduzir a desigualdade social.

É fato amplamente conhecido, exposto em livros e filmes e até motivo de piada, que os franceses não perdem uma chance de ir à rua protestar, mas o calvário de Macron na via-crúcis das manifestações populares tem sido particularmente pesado. A ira dos “coletes amarelos” contra o que percebiam como desatenção das elites para a decadência das cidades do interior perturbou a vida do país por meses seguidos e só foi contida pela chegada da pandemia. Passado o lock­down, a alta do custo de vida reforçou o descontentamento geral, um sentimento que embalou marchas e mais depredação em todo o país contra a reforma da Previdência que o governo impôs a toque de caixa — só neste ano foram catorze greves nacionais em protesto pelo aumento da idade de aposentadoria de 62 para 64 anos.

FERIDA EXPOSTA - Manifestação em Nanterre: “A polícia mata”, diz o cartaz
FERIDA EXPOSTA - Manifestação em Nanterre: “A polícia mata”, diz o cartaz (Alain Jocard/AFP)

Os distúrbios de agora não têm relação direta com o governo e estão calcados em uma divisão profunda e irreconciliável na sociedade francesa. Mas some-se a isso a imagem de Macron como político arrogante e centralizador de quem ninguém gosta, à frente de uma minoria centrista espremida entre um bloco de extrema esquerda e outro de extrema direita, e tem-se o fermento que faz inchar a raiva e a revolta palpáveis na França dos dias de hoje.

O primeiro reflexo do governo e da população foi condenar o tiro em Nahel, adolescente com passagens pela polícia que não representava nenhuma ameaça. O policial responsável foi preso sob suspeita de homicídio culposo. “Nada justifica a morte de um jovem”, disse Macron. O choque inicial dos franceses, no entanto, se transformou em repúdio à violência generalizada dos protestos, que levaram a prejuízos no setor privado calculados em 1 bilhão de euros, com mais de 200 estabelecimentos e 300 bancos vandalizados. Jean-Luc Mélenchon, líder do partido esquerdista França Insubmissa, culpa o descaso do governo com o barril de pólvora multiétnico sempre pronto a explodir nos bairros pobres. Do outro lado, a líder do Reunião Nacional, Marine Le Pen, acusa Macron de negligência com a segurança e brandura com a imigração. “Nesse ringue, os tumultos jogam mais a favor da agenda da lei e da ordem da direita”, avalia Vivien Schmidt, pesquisadora de estudos europeus da Universidade Harvard.

Continua após a publicidade
NA MIRA - Macron: bombardeio de críticas à esquerda e à direita
NA MIRA - Macron: bombardeio de críticas à esquerda e à direita (Yves Herman/POOL/AFP)

As causas da morte de Nahel e da onda de violência nas ruas que se seguiu estão nos banlieues, periferias carentes onde vive uma população de baixa renda composta de franceses descendentes de imigrantes, a maioria do Norte da África, que se sente menosprezada pelos demais e os trata com menosprezo. Nos últimos vinte anos, o governo gastou 60 bilhões de euros para melhorar a qualidade de vida dos mais de 5 milhões nessa situação, com pouco resultado. Nos subúrbios, 57% das crianças vivem na pobreza, três vezes mais adultos estão desempregados e a relação com a polícia é de alta tensão. Uma lei de 2017, que afrouxou restrições ao uso de armas quando um motorista se recusa a parar por ordem policial, é conectada à morte de dezessete pessoas no último ano e meio — boa parte de origem africana. “A sensação é de que os policiais têm licença para matar”, diz Julie Gervais, socióloga de Sorbonne.

Cada episódio como o de Nahel é estopim para novos tumultos, depredações e saques, que, por sua vez, elevam a demanda por segurança. No país das manifestações, porém, a ação policial é sempre problemática, ainda mais se tratando de uma força que frequentemente se excede na repressão — uma lei que proibiu a divulgação de vídeos de violência policial nos protestos dos coletes amarelos, por exemplo, foi criticada e desobedecida em todo o país. Enredado nesse labirinto, com a sociedade cada vez mais raivosa e propensa a protestar, Macron pode prever mais dias difíceis pela frente. E a Olimpíada — de Paris, em 2024 — nem começou.

Publicado em VEJA de 12 de julho de 2023, edição nº 2849

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.