A ressurreição dos mortos
A larga vitória da chapa de Cristina Kirchner sobre a de Macri nas primárias sacode os mercados e embaralha as projeções para a Argentina
A Argentina começou a semana engolfada em uma onda de incertezas e turbulências que deve sacudir o país por um bom tempo. No domingo 11, dia das Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso), uma eleição que precede a votação “de verdade” e serve de termômetro para o que virá, a chapa encabeçada por Alberto Fernández e com a enrolada e malfalada ex-presidente Cristina Kirchner como vice desmentiu todas as pesquisas e ganhou de lavada da do candidato à reeleição, Mauricio Macri — 47% a 32%, em vez do quase empate que se antecipava. Os mercados tremeram, o peso desabou 30% e as projeções para o futuro entraram em parafuso, sendo a mais preocupante delas a que levantava dúvidas sobre a capacidade de Macri levar a termo seu governo, que chega ao fim em dezembro. Para afastarem a sombra de uma ruptura institucional, os dois adversários dispararam mensagens tranquilizadoras. “Ele se comprometeu a colaborar de todas as formas para que o processo eleitoral, e a incerteza política que desperta, afete o menos possível a economia”, escreveu Macri no Twitter, após uma “longa e boa” conversa por telefone com Fernández. Este, por sua vez, havia assegurado em entrevista que “o presidente sabe que conta com minha ajuda para terminar o mandato”.
+ 1 Minuto com Augusto Nunes: a Argentina flerta com a catástrofe
Cristina e, antes dela, o marido, Néstor Kirchner (morto em 2010), fecharam o país ao comércio internacional, compraram briga com os provedores de empréstimos, nacionalizaram empresas, entraram em confronto com os agricultores argentinos e mergulharam o país em profunda crise econômica. Macri, empresário bem-sucedido situado na direita liberal que encanta eleitores mundo afora, assumiu em 2015 com a promessa de mudar tudo isso e tirar a Argentina do buraco. Fracassou fragorosamente na empreitada, mas, mesmo assim, pouca gente acreditava que os argentinos perdoariam Cristina — além de tudo, enredada em seis processos por corrupção. Pois perdoaram. Contribuiu para isso ter se candidatado a vice e posto no cargo mais alto um político centrista e moderado, que em outros tempos rompeu com ela e criticou duramente sua política intervencionista.
Agora, o avanço peronista causa arrepios no mercado financeiro e em países vizinhos — Brasil inclusive. “Não há solução mágica para tirar a Argentina da crise e, neste momento, a estabilidade depende de Macri e Fernández se entenderem”, alerta Sergio Doval, diretor do instituto de pesquisa argentino Taquion. Os votos a favor da dobradinha Fernández-Cristina foram impulsionados pelo desastre econômico em que o país se encontra: inflação em 55%, desemprego em 10%, terceiro ano seguido de recessão e 32% da população na pobreza. Pesou na balança o empréstimo de 57 bilhões de dólares, com a usual contrapartida de arrochos, que Macri tomou do Fundo Monetário Internacional — instituição da qual os argentinos têm as piores lembranças —, sem conseguir realizar o ajuste fiscal que sanaria as contas públicas (veja a coluna de André Lahóz Mendonça de Barros).
Após a derrota, Macri anunciou um pacote de bondades — bônus para os funcionários públicos, redução de imposto para aposentados, mais ajuda para famílias necessitadas — que não deve ter grande impacto. Diante do provável resultado da eleição de 27 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro incorporou o espírito de um torcedor em jogo do Brasil contra a Argentina e disparou insultos a Fernández e Cristina, os “bandidos da esquerda”. Pelo jeito a turma dos panos quentes vai ter trabalho.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648