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Acabou-se o que era Boris

Depois de uma sequência de escândalos, o primeiro-ministro britânico, impopular e sem apoio do próprio gabinete, foi forçado a apresentar sua renúncia

Por Amanda Péchy Atualizado em 8 jul 2022, 09h10 - Publicado em 8 jul 2022, 06h00

Ao fim de três anos de muito barulho — um traço recorrente em sua trajetória —, o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, terminou seu mandato como chefe de governo. Tirando partido das frases de efeito, dos gestos retumbantes e do jeito atrapalhado, com cabelo perenemente despenteado e ternos mal assentados, Johnson assumiu como guardião do Brexit e por algum tempo surfou confortavelmente em uma onda de popularidade e votos abundantes. Aí pisou na bola e tentou se safar mentindo — uma, duas, três, quatro vezes. Cansou. Nem a opinião pública nem mesmo os colegas de partido continuavam a aceitar as emendas piores que o soneto e exigiram sua cabeça. “Saio triste por não ter cumprido meu mandato e ter de deixar o melhor emprego do mundo”, lamentou na despedida — uma de suas raras falas em que todo mundo acreditou.

Ele não vai sair imediatamente. Os conservadores têm ampla maioria no Parlamento (nos bons tempos, Johnson levou o partido a uma impactante vitória eleitoral) e, portanto, o direito de indicar o primeiro-ministro. Precisam agora eleger um novo líder partidário, ato que o recesso parlamentar deve adiar para outubro. Até lá, o primeiro-ministro desgrenhado segue exercendo um mandato-tampão — tudo o que o Reino Unido não precisa em momento de inflação nas alturas, falta de mão de obra e, sim, tropeços no Brexit, que até hoje não teve o caminho completamente aplainado. Vários candidatos estão na fila, mas não há um nome definido. A hipótese de eleição é remota e faz tremer os conservadores: resultado, em grande parte, da rejeição ao primeiro-ministro (em junho, 71% avaliavam mal o governo), eles perderam duas eleições regionais recentes e contam com 33% das intenções de voto, ante 40% das dos trabalhistas.

BASTA - Sunak (à esq.) e Javid: a saída dos ministros poderosos precipitou a queda do governo -
BASTA – Sunak (à esq.) e Javid: a saída dos ministros poderosos precipitou a queda do governo – (Jessica Taylor/UK Parliament/AFP; Jessica Taylor/UK Parliament/AFP)

O caso que furou de vez a bolha de poder de Johnson foi ter colocado na vice-liderança do Partido Conservador no Parlamento um amigo com histórico de abusos sexuais. Mal assu­miu, veio a primeira denúncia — Chris Pincher (o apropriado sobrenome quer dizer beliscador, em inglês) teria apalpado dois jovens em uma festa recente. Johnson primeiro disse que não sabia dos pecados do parlamentar, depois admitiu que fora informado mas tinha “esquecido” e pediu desculpas. Antes disso, passou pelo prolongado e embaraçoso processo de revelações sobre festinhas realizadas em 10 Downing Street, o complexo onde mora e trabalha, em pleno lockdown da pandemia. Primeiro, como sempre, disse que não sabia. Flagrado em vídeo numa delas, alegou que passara rapidamente e não tinha notado que havia ali uma celebração. Quando se soube que uma delas era para comemorar seu aniversário, confessou e pediu desculpas.

Antes ainda, a pedido da mulher, Carrie (que, por sua influência, se tornou uma pedra no sapato dos ministros), promoveu uma vasta reforma na ala residencial patrocinada, soube-se depois, por um empresário. Diante das suspeitas de doações indevidas para bancar o papel de parede dourado e outros luxos, Johnson seguiu o roteiro usual: negou, voltou atrás, admitiu mais ou menos e pediu desculpas esfarrapadas. “Mentir para o Parlamento é uma ofensa constitucional muito séria e já foi motivo de demissões de primeiros-ministros”, lembra Matthew Williams, pesquisador de política da Universidade de Oxford.

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IMPULSO - Comemoração pelo Brexit: a defesa da saída da União Europeia foi um marco na carreira de Boris Johnson -
IMPULSO - Comemoração pelo Brexit: a defesa da saída da União Europeia foi um marco na carreira de Boris Johnson – (./AFP)

O acúmulo de erros e mentiras foi minando o apoio a Johnson, até a derrocada final — mais uma baixa considerável na tropa direitista que marchou com Donald Trump e que agora vai encolhendo mundo afora. Na terça-feira 5, véspera da sessão do Parlamento convocada para explicar (ao jeito dele) o caso Pincher, dois ministros poderosos — Rishi Sunak, das Finanças, e Sajid Javid, da Saúde — renunciaram, fartos dos constrangimentos advindos de seu apoio ao chefe. Seguiu-se uma avalanche: em dois dias, 55 integrantes da equipe de governo jogaram a toalha.

Johnson, que passou dias insistindo que não sairia, saiu. “Seu governo foi repleto de escândalos, mas o que mais lhe tirou apoio foi a ausência de remorso pelo que fez”, avalia Iain McLean, professor de política em Oxford. O terremoto acontece no momento em que o governo planeja um corte de impostos e outras medidas para conter uma inflação de 9,1%, a mais alta em quarenta anos, greves pipocam em vários setores após décadas de sonolência do movimento sindical e o êxodo de europeus temerosos do Brexit complica o funcionamento de diversos serviços.

AGONIA - Theresa May, a antecessora: a fraqueza dela fortaleceu a posição dele -
AGONIA - Theresa May, a antecessora: a fraqueza dela fortaleceu a posição dele – (Alastair Grant/AP/Image Plus)

Meter os pés pelas mãos não é propriamente uma novidade para Boris Johnson — a diferença é que sempre conseguiu se livrar das encrencas. Nascido em família aristocrática, formado em escolas de prestígio, ele cultivou o jeito atrapalhado e mal-ajambrado para conquistar simpatias, com sucesso. Começou uma carreira jornalística sendo demitido do The Times, de Londres — forjara, palavra por palavra, as declarações contidas em sua primeira reportagem de capa. Abrigou-se no conservador The Telegraph, no qual mantém uma coluna até hoje.

A passagem pela prefeitura de Londres em plena Olimpíada de 2012 realçou seus cabelos revoltos, esquisitices e crescente influência, mas foi no Brexit que passou a ser levado a sério, como ferrenho defensor da separação, posição anunciada em sua coluna no Telegraph (diz a lenda que ele escreveu duas, uma contra e uma a favor, e só optou no último segundo). Johnson estava na linha de frente da oposição a Theresa May, a primeira-ministra que agonizou meses tentando fechar as negociações do Brexit. Johnson entrou para cravar o último prego no divórcio. Ultimamente, preparava mais uma das suas: ignorar solenemente as providências que aceitou e assinou no acordo relativas à Irlanda do Norte. Não deu tempo.

Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797

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