Há os furtos comezinhos, desses que pululam nas cidades europeias com grande afluxo de turistas — ficou famoso, nas redes sociais, em 2023, o brado “Attenzione, pickpocket!”, da italiana que denunciava os ladrões de Veneza. Mas há também esbulhos históricos, imunes ao tempo, tratados como questão de Estado. Fazem parte dessa categoria tungas recentes como a do fóssil do dinossauro brasileiro Ubirajara jubatus, subtraído de um sítio paleontológico no Ceará em 1995 e só devolvido no início do ano pelo museu alemão onde ficou anos depositado. Convém iluminar, acima de tudo, pilhamentos antigos, como o dos chamados mármores de Elgin, que ornamentavam o Partenon, na Grécia, e foram levados para a Inglaterra no século XIX pelo diplomata britânico Thomas Bruce (1766-1841), o Conde de Elgin — daí o nome. O conjunto milenar de esculturas é hoje uma das principais atrações do reputado Museu Britânico, em Londres.
Em torno do Elgin brotou, agora, uma guerra fria, nó diplomático difícil de desatar. Rishi Sunak, primeiro-ministro do Reino Unido, do Partido Conservador, se recusou a encontrar o homólogo grego, Kyriakos Mitsotakis, que estava de passagem por Londres, no fim de novembro. O motivo? Sunak queria evitar um debate público envolvendo as esculturas. Além de declarar publicamente que elas pertenciam à Grécia e que foram “essencialmente roubadas”, Mitsotakis havia se encontrado com o líder da oposição britânica, o trabalhista Keir Starmer, crime de lesa-pátria para o atual governo. Depois, o líder grego ainda autorizou a abertura de negociações diretas com o presidente do Museu Britânico, George Osborne, para desenhar a possibilidade de um acordo de empréstimo. Vale lembrar que os ingleses Starmer e Osborne são contra a devolução dos objetos, cuja permanência na Inglaterra é protegida por lei, mas ambos criticaram a atitude de Sunak. Consideraram a postura do premiê avessa ao diálogo, arrogante e belicosa.
A trama é complexa. O caso dos mármores de Elgin é um exemplo do que aconteceu durante a expansão colonial britânica e de outros países, e levanta questões éticas e de Justiça. Mitsotakis comparou os pedaços dos mármores tirados do Partenon à “Mona Lisa cortada ao meio”, analogia que ilumina o simbolismo dessas esculturas para a identidade grega. Mesmo sem o vasto império de outrora, o Reino Unido insiste na defesa da inviolabilidade do Museu Britânico. É como se dissesse aos gregos que eles deveriam se orgulhar ao verem suas relíquias ao lado de outras provenientes da África e da Ásia, em ótimo estado de preservação.
O zelo é real, e merece aplausos. Mas não há como empurrar para debaixo do tapete uma verdade: as grandes coleções da Antiguidade são produtos do nacionalismo exaltado do século XIX. “Se olharmos para trás, percebemos que esses museus tradicionais, produto do século das luzes, são oriundos de saques e espólios”, diz Ana Karina Calmon, professora de museologia da Universidade Federal de Sergipe. “As primeiras coleções dessas instituições foram montadas dessa forma.”
A ideia de que milhões de objetos, criados em diferentes culturas, devam permanecer confinados nos acervos de instituições de países ricos está sendo desafiada. A maior parte das obras foi feita para representar os valores e crenças de diferentes povos, e não pode ser subtraída. É um equívoco manter os objetos distantes de todo o repertório cultural que proporcionou sua existência. “A ideia desses museus como centros mundiais irradiando cultura para as periferias não é mais aceitável”, afirma Antônio Álamo Saraiva, curador do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Universidade Regional do Cariri, que recebeu o fóssil Ubirajara jubatus. “A devolução desses itens, portanto, parece um movimento natural.”
São indícios de que a noção dos museus como os conhecemos hoje precisa ser rediscutida. “Não podem mais ser vistos como salvadores da cultura mundial”, diz Saraiva. A França e a Alemanha estão engajadas em programas significativos de repatriação de objetos culturais. Apesar das preocupações com segurança e preservação, artefatos africanos estão retornando à África; cerâmicas, ao Sudeste Asiático; e tesouros tribais, à Polinésia. Não se trata, claro, do fim dos grandes museus. Muitos deles têm itens de sobra e seria benéfico compartilhá-los. O retorno dos mármores do Partenon pode, de fato, estabelecer um precedente extraordinário. Seria um manifesto em defesa de uma nova ordem, um novo modo de encarar a riqueza cultural da civilização.
Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872