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A arte de combater a História

Governantes autoritários torturam a verdade histórica para ver se ela confessa e declara aquilo que eles querem ouvir

Por Jaime Pinsky*
Atualizado em 12 Maio 2021, 20h09 - Publicado em 12 Maio 2021, 19h59

A História tem o raro privilégio de ser amada e combatida. Seu prestígio é tão grande que até locutores esportivos não se conformam em descrever uma marca inédita, logo garantem que o atleta “fez história”. No Congresso, parlamentares não aprovam leis, mas também registram feitos históricos… Todos querem deixar seu nome na História. Uns confessam essa pretensão, outros a escondem, mas sempre esperam pelo que chamam de “julgamento da História”, como se Clio fosse sensível à habilidade retórica. Como todo bem valioso a História é muito desejada, e todos querem registrar nela sua versão, com a esperança que, até por distração de futuros escribas, essa versão passe como sendo a verdadeira…

Mesmo negada, contestada, distorcida, todos querem a História para si, ou do seu lado. E muitos tentam se apropriar dela. Ouvimos o tempo todo frases como “a História ensina que…”, ou sua variante mais humilde, “temos que aprender com a História” e ainda “a História é a mestra da vida”. Na verdade, a maioria das pessoas não quer aprender com a História, mas ensiná-la. Cada um do seu jeito. Alguns ainda se dão antes ao trabalho de estudá-la (antes de tentar ensiná-la), outros nem isso. O importante é tirar e ensinar lições, a partir do passado. Às vezes esse passado tem relação com fatos e processos que aconteceram. Outras vezes, não. O passado é uma forma de dar credibilidade a atitudes e comportamentos do presente. Nem que para isso haja necessidade de inventar o passado adequado para isso.

Todo mundo sabe que governantes autoritários torturam a História para ver se ela confessa e declara aquilo que eles querem ouvir. Governos antidemocráticos odeiam a verdade, pois ela revelaria muita coisa que eles não admitem, ao menos publicamente. Atentados contra a Cidadania, a Ciência, a Natureza, a Justiça, a Educação são perpetrados a toda hora. Ditadores (e candidatos a ditadores) têm esquemas bem montados para alimentar seus seguidores com mentiras. Governos autoritários se esmeram em “criar” fatos históricos e para isso contratam especialistas em marketing. Verbas astronômicas, desviadas da Saúde (inclusive para a compra de vacinas), da Educação, da Habitação, do bem-estar dos cidadãos são usadas em propaganda. E veículos sérios da imprensa são punidos com verbas insignificantes, ou nenhuma verba, por conta de sua independência. Afinal, os cofres oficiais estão nas mãos do Governo e agradecer ou punir a mídia depende apenas de sua boa vontade.

É verdade, ser infiel à verdade dos fatos não é algo que surgiu agora. Governantes e políticos praticam isso há muitos séculos. Hamurabi, ao codificar as leis de seu império, fez questão de se mostrar justo, generoso, operante, dinâmico, como se estivesse fazendo campanha eleitoral. Ramsés II mandava raspar dos monumentos o nome de faraós anteriores e colocar o seu, para ficar com o crédito de obras e conquistas militares. Reis tinham seus próprios “historiadores”, cuja função era mostrar a grandeza dos soberanos a que serviam. Os nazistas até criaram um campo de concentração “de artistas”, Terezin, para mostrar como tratavam bem os prisioneiros, particularmente os judeus. Mas nunca se fez isso de forma mais intensa e desavergonhada do que hoje em dia, graças à tecnologia. Governantes se comunicam com os cidadãos pelas redes sociais, bancam a difusão de fake news, politizam questões científicas, distorcem acontecimentos para plantar versões que lhes agradem com a finalidade de favorecer sua ideologia ou seu projeto de poder.

É bom que se diga que ataques à verdade histórica não provém apenas de governos. Militantes organizados também se acham no direito (e, segundo suas convicções, no dever) de nos impingir sua versão sobre os fatos. Muitas vezes há choque frontal entre o que aconteceu e a “interpretação” que eles dão ao acontecido. Nesses casos, pior para os fatos, que saem perdendo, uma vez que o compromisso do militante – tenha ou não boas causas – é apenas com sua militância. Interpretações “convenientes” também são ataques contra a História.

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A História pode e precisa ser defendida. Especialmente nos dias de hoje, quando as mentiras, que sempre existiram, ganham uma dimensão diferente, com fake news vomitadas por atacado, de forma organizada. Alguns governantes, em vários países do planeta, mesmo tendo sido eleitos democraticamente, colocam-se em posição de negar a democracia, as eleições, o direito à palavra aos opositores. Há mesmo lugares em que opositores são sumariamente presos, aí sim, por uma justiça corrupta. Em outros, os governantes estabelecem um esquema paramilitar destinado a calar os que se opõem às suas decisões e ambições. E, uma vez mais, usa-se a História para esconder, distorcer, mentir.

Como se não bastasse, utiliza-se o negacionismo e o anacronismo como ferramentas para “moldar” o passado às necessidades do presente. Pobre História? Não, pobres e infelizes os que acham que ela confessará fatos que não ocorreram, processos que não foram constatados. Ameaçar a História é ameaçar a liberdade, a cidadania, a democracia. A História persistirá se cerrarmos fileiras para defendê-la.

*Jaime Pinsky é historiador, foi professor na Unesp de Assis, na USP (onde é doutor e livre docente) e na Unicamp (da qual é professor titular). É autor, coautor e organizador de 30 livros, inclusive Novos combates pela História (Editora Contexto), que acaba de ser lançado.

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