Quentinhas de luxo: os restaurantes estrelados aderem ao delivery
A pandemia obrigou os melhores endereços do mundo a entregar em casa e reformular seus ambientes luxuosos. Vai funcionar?
“É um pesadelo.” O desabafo feito pelo chef francês Philippe Etchebest, dono de duas estrelas no Michelin, o aclamado guia mundial da gastronomia, durante uma conversa com Alain Ducasse, o chef mais premiado pela publicação, sintetiza o inferno vivido pelos restaurantes estrelados. Na época, em meados de abril, a dupla comentava o que seria dos restaurantes no retorno às atividades depois da pandemia do novo coronavírus. Para os franceses e boa parte dos europeus, o momento finalmente chegou — mas com algumas sensíveis mudanças. Na alta gastronomia, com seus pratos muitas vezes comparados a obras de arte, ambientes impecáveis e frequência estelar, a crise da Covid-19 deixará sequelas, além de um futuro imprevisível. Em Paris, Ducasse aderiu à nova onda: pratos do famoso Benoit passaram a ser entregues aos clientes pelo serviço de delivery, uma transformação sem precedentes na culinária francesa. Em outro endereço, o tradicional Allard, bistrô fundado em 1932, o chef instalou barreiras de proteção entre as mesas, uma interferência indesejada que elimina parte do charme de um ambiente conhecido por ser acolhedor. Ao anunciar a novidade, Ducasse justificou: “Estamos reinventando a proximidade para viver de forma sustentável, sem o vírus”.
O surto atingiu em cheio o setor de restaurantes, mas as casas estreladas tendem a sofrer ainda mais. Ao contrário dos endereços menos elegantes, em geral acostumados a entregar comida em simples embalagens de papelão, os restaurantes de luxo precisam manter a aura de sofisticação que cimentou suas reputações. Como fazer isso entregando quentinhas que viajam em caixas acopladas nas costas de um motoboy? Outro desafio é cumprir as recomendações sanitárias das autoridades sem desfigurar os ambientes. Mais do que apenas experimentar um prato saboroso, comer em uma casa de luxo é, por si só, uma grande experiência. Os comensais terão essa satisfação se as mesas estiverem separadas por proteções de acrílico, se os garçons usarem máscaras e viseiras e se houver marcações no chão para separar os clientes? Outro ponto duvidoso diz respeito ao preço. Os restaurantes premiados, nem é preciso dizer, cobram pequenas fortunas por tudo o que oferecem — os pratos, a experiência, o ambiente. Com os impactos econômicos provocados pela crise do coronavírus, haverá quantidade suficiente de clientes dispostos a pagar caro por um jantar inesquecível? Quanto tempo vai demorar para que uma mesa seja tão disputada quanto nos áureos tempos, quando reservas deveriam ser feitas com dias, às vezes semanas, de antecedência?
As respostas permanecem incertas, mas os grandes chefs estão atentos ao desafio que terão pela frente. Em São Paulo, o francês Erick Jacquin, jurado do programa MasterChef, adotou o delivery no Le Président e diz que a quarentena o obrigou a rever velhos conceitos. “Cogitei oferecer um menu degustação de caviar, mas o problema é que teria um custo muito elevado”, diz. “Já estou pensando em abandonar a ideia para não assustar o público.” Jacquin afirma que sempre haverá espaço para a alta gastronomia, mas ela será diferente daqui por diante, incluindo o serviço permanente de delivery. “Tanto no Brasil quanto na França, teremos de aprender a cozinhar por um preço justo. Com luxo, sim, mas os valores serão mais baixos”, diz. Jacquin também ressalta que o declínio do turismo afetará os negócios por algum tempo. Boa parte do movimento das casas famosas se deve à presença de estrangeiros, que colocam na agenda a visita a restaurantes estrelados. Mas os turistas sumiram e não se sabe quando voltarão, nem na Europa nem no Brasil.
Um dos chefes mais festejados do país, Alex Atala também foi obrigado a se ajustar à crise. Para aliviar os danos causados pelo isolamento social, ele implementou o delivery no Mercadinho Dalva e Dito, de comida brasileira, e diz que está ansioso pelo dia em que voltará a operar normalmente. “O começo será diferente, com menos gente e maior distanciamento entre as pessoas”, afirma. “Vamos continuar nos reinventando e buscando saídas para que o cliente tenha uma experiência única.”
Uma das alternativas cogitadas pelos donos de restaurantes é retirar boa parte das mesas e, assim, manter a separação segura entre os clientes. Nem todos acham que o modelo dará certo. “Não sei se as pessoas querem ir a restaurantes semivazios”, diz o crítico gastronômico Luiz Horta. “Um dos motivos para frequentá-los é ver e ser visto, participar de um grande teatro social.” Horta também afirma que se surpreendeu com a qualidade do delivery oferecido por alguns estabelecimentos. “O serviço se tornará irreversível, ao menos nos próximos dois anos. Cada restaurante encontrou uma forma de colocar a sua identidade: recebi uma dúzia de ostras em uma caixa de isopor linda, deu vontade de guardar”, destaca. De fato, o setor vive um dos maiores desafios de sua história. Em maio, ao anunciar o adiamento da edição 2020 do Guia Michelin, Gwendal Poullennec, diretor internacional da publicação, foi preciso no diagnóstico: “Os sonhos de muitos chefs estão sendo postos à prova neste momento”. Mas os sonhos não podem — e não vão — acabar.
Publicado em VEJA de 1 de julho de 2020, edição nº 2693