Foi um espanto. Em 2004, o vinho chileno era conhecido no mundo por ser bem-feito e barato, mas não era considerado bom o suficiente para figurar nos debates sobre os grandes rótulos de países como França, Itália e Espanha. Foi preciso um julgamento às cegas reunindo especialistas internacionais para mostrar que poderia competir com os principais nomes do mercado. Na época, o enólogo chileno Eduardo Chadwick, responsável por vinhedos na região do Vale do Aconcágua, organizou uma degustação em Berlim. Selecionou três de seus próprios vinhos, Don Maximiano, Seña e Viñedos Chadwick, todos elaborados com base de cabernet sauvignon, e instalou-os ante grandes nomes de Bordeaux, como Château Margaux e Château Lafite Rothschild, ambos da safra 2000, donos de 100 pontos do renomado crítico americano Robert Parker, e ante rótulos da Toscana, como o Solaia. Sem saber o que estavam degustando, os críticos escolheram dois vinhos chilenos como os melhores daquele painel. E o resultado foi uma aprovação global da bebida produzida no Chile, não apenas aqueles de Chadwick. A partir de então, passou-se a reconhecer a qualidade dos bravos rótulos produzidos na América do Sul.
Agora, vinte anos depois, uma nova rodada de degustações está sendo organizada em cidades como Tóquio, Seul, Zurique, Toronto e Nova York. Desta vez, a prova não será às cegas, mas vertical, quando várias safras de um mesmo vinho são provadas. O objetivo é mostrar como o vinho chileno evoluiu com o tempo, ao comemorar o episódio de vinte anos atrás. E a turnê levanta uma pergunta fundamental: de onde virá a próxima revelação, a surpresa a vencer os campeões?
Não é nova a ideia de experimentação às cegas para colocar outro país no mapa dos vinhos. Em 1976, o negociante de vinhos britânico Steven Spurrier, na época vivendo em Paris, resolveu medir rótulos dos Estados Unidos, sem nenhuma tradição, ante ícones de Bordeaux e da Borgonha. A proposta foi vista com ceticismo, mas vários especialistas se apresentaram na ocasião, dispostos a assegurar a superioridade francesa. O que aconteceu, no entanto, foi o oposto. O tinto Stag’s Leap Wine Cellars, elaborado com a uva cabernet sauvignon, bateu concorrentes como Château Mouton-Rothschild e Château Haut-Brion, ícones bordaleses, e ficou em primeiro lugar. O branco Chateau Montelena, feito com chardonnay, também superou, com folga, o segundo colocado, o Mersault Charmes Roulot, da Borgonha. Os vinhos californianos mostraram que havia ótima qualidade no Vale de Napa e o mundo ficou surpreso. A incrível história virou até filme, O Julgamento de Paris, de 2008, com Alan Rickman (1946-2006), o Snape de Harry Potter, no papel de Spurrier.
O impacto de degustações de olhos vendados é imenso, de forma a derrubar preconceitos com a origem de determinados vinhos. Foi assim com os americanos, na década de 1970, e com os chilenos, no início dos anos 2000. A qualidade é assegurada sem que os especialistas saibam a origem. “Não precisamos mais provar nada”, disse Eduardo Chadwick a VEJA. “Mas ainda existem desafios, como conseguir entrar em restaurantes estrelados pelo Michelin, muitos deles na França, onde imperam chefs e sommeliers franceses. Mas não se questiona mais a qualidade de nossos vinhos.” Depois da prova de Berlim, outros grandes tintos chilenos, como Don Melchor e Almaviva, por exemplo, também começaram a ser cobiçados pelos colecionadores e enófilos de várias partes do mundo.
Imaginar as futuras surpresas, insista-se, é movimento fascinante. Vários países já são reconhecidos pela qualidade de seus vinhos, como Argentina, África do Sul e Nova Zelândia, mas nunca realizaram um teste semelhante. Outros, como a China, vêm avançando na produção, mas a bebida feita por aquelas bandas é praticamente desconhecida no Ocidente, e ainda há insistente tabu. É chegado o momento de saber mais sobre a produção asiática e ampliar, como se deve, o conhecimento. Só não vale o prejulgamento.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891