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Novo livro faz vasto mergulho pela história da falsificação de vinhos

Obra provoca a discussão: se o resultado é bom, não vale dar um gole? Desde que a pessoa saiba o que está levando à boca, sim

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 dez 2023, 08h00

Capaz de proporcionar surpreendentes experiências ao paladar, o universo dos bons vinhos habita o mundo dos ritos prazerosos e do glamour. Há um choque, portanto, quando as garrafas ocupam a parte menos elegante do noticiário, sinônimo de espanto para sommeliers, enólogos e gente comum que tem a vida alegrada pela bebida cujos primeiros registros datam do Egito Antigo. Foi assim no episódio em que o FBI deu uma batida na casa californiana do colecionador e comerciante das mais raras safras, o indonésio Rudy Kurniawan, 47 anos. A descoberta: ele encantava as papilas das altas rodas com meras imitações. Garrafas, rolhas, rótulos e até receitas — tudo era falso. No material apreendido havia inclusive receitas, como a que reproduzia o lendário Mouton Rothschild de 1945 (cerca de 15 000 reais a unidade): duas partes de Château Cos d’Estournel com uma de Château Palmer e outra de cabernet da Califórnia, ensinava Kurniawan, condenado a dez anos de prisão e obrigado a pagar o equivalente a 150 milhões de reais a quem ludibriou.

O caso virou um símbolo desses tempos de uma atividade que se confunde com a própria história da humanidade, tema de Vintage Crime, recém-­lançado livro da britânica Rebecca Gibb, que promove um mergulho em curiosas tramas de adulteração de vinhos e provoca a discussão: se o resultado é bom, não vale dar um gole? E ela própria responde: desde que a pessoa saiba o que está levando à boca, sim.

Houve um tempo em que falsificação era praticamente a regra. No Império Romano, dois milênios antes de químicos dominarem a ciência de transformar suco de uva em vinho e entenderem como evitar que a mistura azede, viticultores e comerciantes adicionavam ervas e especiarias para tornar a bebida mais saborosa e durável. Um tinto poderia ser adoçado com mel, enquanto os brancos secos mesclavam água do mar, feno-grego e raiz de lírio. Em geral, as ânforas continham ainda uma porção de redução de suco de uva. À época, ninguém se indignava com o festival de aditivos, cuja dosagem, de alguma forma, definia o estrato social do dono do copo.

Soldados costumavam beber uma mistura avinagrada, e os escravos tomavam uma à base de cascas de uva já pisadas. Só mesmo os mais ricos desfrutavam safras sem adulteração, como as do cobiçado Falernian, que tem o nome eternizado em ruínas de uma taverna de Pompeia. “Vinhos já eram um grande símbolo de status, e a elite consumia o que melhor refletisse sua fortuna e bom gosto”, contou a VEJA Rebecca, que integra a seletíssima turma com o título de master of wine. Em História Natural, Plínio, o Velho (23 d.C.-79 d.C.) já dizia que o que o povo bebericava “não poderia sequer ser denominado vinho”.

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ASSIM É SE LHE PARECE - Rudy Kurniawan: o mestre da adulteração (Ricardo DeAratanha/L.A. Times/Getty Images)

A maioria dos aditivos não representava riscos à saúde, embora uma parcela menor escapasse à regra. Para adoçar e ampliar o prazo de validade de uma garrafa, os romanos aprenderam a fazer xarope de suco de uva em potes revestidos de chumbo, metal que dava à mistura sabor açucarado, porém era tóxico. A prática seria mantida por séculos. Bem mais tarde, em 1498, o Vaticano chegou a emitir uma bula papal proibindo o néctar fatal, o que atingiu o clero, motor da produção vitivinícola da Europa. O veto, no entanto, não impediu que, passados dois séculos, um comerciante de Ulm, pequena cidade na Alemanha, acrescentasse ao vinho o perigoso monóxido de chumbo — isso num momento em que o país acabara de sair da Guerra dos Trinta Anos e, na escassez, usavam-se uvas verdes mais ácidas. Não deu outra: a morte em série de monges católicos. Biógrafos sugerem que Beethoven (1770-1827), que além de um dos grandes gênios da música era aficionado enófilo, teria ficado surdo devido à ingestão por anos do líquido venenoso. Apenas em 1996 a FDA impôs normas rigorosas contra a presença do metal pesado em bebidas, garrafas e decantadores.

A farra das falsificações sofreu um baque no século XIX, quando se fincou um marco fundamental à indústria: a bebida finalmente recebeu uma definição, a loi griffe, que estabelecia que só o líquido composto de uvas frescas fermentadas, sem adoçantes ou diluição, poderia ser chamado de vinho. Como toda lei, essa logo seria burlada por charlatões que compravam uvas brancas de baixa qualidade e, após a fermentação, rotulavam o líquido de champanhe. No início do século XX, quase metade de todas as garrafas vendidas na França do egrégio espumante era falsa, o que suscitou uma onda de revoltas por parte de produtores indignados. Algo semelhante ocorreu no capítulo conhecido como Winegate, de 1973, quando comerciantes foram desmascarados vendendo vinhos baratos da região de Languedoc como se fossem preciosos bordeaux. “Golpistas que fazem um rótulo se passar por outro costumam atuar onde existe uma elite com dinheiro, vontade de se exibir e falta de conhecimento”, diz Dirceu Vianna, único brasileiro com o título de master of wine.

O mercado de falsificações foi se aprimorando e hoje não envolve mais aditivos, baseando-se em rótulos que não contam a verdade sobre o interior da garrafa. O naco dessas bebidas que ludibriam o consumidor representa em torno de 10% da produção — na China, ponto fora da curva, mais de 25% dos locais de venda chegam a comercializar vinhos fake. Em reação, respeitados produtores do país pedem para ver suas garrafas quebradas após as degustações. É uma praga difícil de coibir mesmo diante dos avanços tecnológicos, como a criação de rótulos com marcas de verificação semelhantes às de notas de dinheiro.

No fim, acaba funcionando como no mundo das artes: o martelo decisivo ainda é dos especialistas e, numa atividade de tal natureza, sempre há erros. “Tanto a fraude quanto o equívoco de especialistas são dois lados do aspecto humano da história do vinho”, observa Rebecca, a autora de Vintage Crime. “É verdade que a autenticidade nesse universo está relacionada às características singulares do local e do produtor, o que os franceses chamam de terroir”, explica Michael Fontaine, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. “Mas e se uma garrafa falsa cumpre o seu propósito, de dar prazer, por que não tomar?”, provoca. Deportado em 2021 para sua terra natal, a Indonésia, Rudy Kurniawan segue oferecendo jantares chiques regados a vinho, hoje em Singapura. A diferença é que agora todo mundo sabe do que se trata e não tem pudor em fazer tim-tim com suas elogiadas contrafações.

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