Uma das receitas mais refinadas da cozinha francesa, o tournedos rossini tem origem incerta. A autoria do prato criado no século XIX e batizado em homenagem ao compositor italiano Gioachino Rossini, grande apreciador da culinária francesa, é atribuída a Antoine Carême, o cozinheiro dos reis; a seu discípulo, Adolphe Dugléré, que cuidou dos banquetes da bilionária família Rothschild; e ainda a Auguste Escoffier, o inventor do menu à la carte. Seja lá quem for o mestre idealizador da iguaria, a lista de ingredientes é clássica e imutável: um corte alto de filé-mignon encimado por um escalope de foie gras grelhado na manteiga e lâminas finíssimas de trufas negras. A combinação entrou para a literatura gastronômica e resistiu incólume, por dois séculos, ao vaivém das preferências culinárias. Agora, assim como muitas outras que levam na preparação o fígado gordo e macio de ave, a delícia está ameaçada de extinção.
No fim de outubro, o conselho municipal de Nova York proibiu a venda do foie gras em lojas, mercados e restaurantes da cidade a partir de 2022. Quem desobedecer estará sujeito a uma indigesta multa de 2 000 dólares (pouco mais de 8 000 reais). “Isso é uma idiotice”, fulminou David Chang, escritor, apresentador de TV e dono da rede Momofuku. “O que virá a seguir? Vão proibir a vitela? Os cogumelos?”, indignou-se Marco Moreira, proprietário do Tocqueville, em Manhattan. Ken Oringer, outro cozinheiro estrelado de Nova York, à frente do grupo Toro, saiu em defesa do livre-arbítrio na alimentação. “Uma das coisas mais belas deste país é podermos escolher o que vamos comer”, reagiu o cozinheiro, criador de acepipes como o foie gras maçaricado com conhaque, cranberries e pimenta.
O fator que embrulha o estômago, no caso do foie gras (fígado gordo, em francês), é a maneira como é produzido. Patos e gansos são confinados com 3 meses de vida. Duas vezes por dia, uma ração à base de amido de milho e gordura de porco lhes é injetada goela abaixo por meio de um tubo de metal que chega ao esôfago. O processo, batizado de gavagem, leva o fígado das aves a crescer até doze vezes acima de seu tamanho normal, podendo alcançar meio quilo nos patos e 2 quilos nos gansos. Em cerca de um mês, eles estão prontos para ser abatidos. O método de fazer o fígado gordo em escala industrial vem sendo denunciado há anos por organizações de proteção de animais e, vira e mexe, é tema de manifestações e protestos de rua. “Trata-se de uma das práticas mais violentas na produção de alimentos, ainda por cima voltada para o mercado do puro luxo”, argumentou em seu projeto a autora da proibição em Nova York, Carlina Rivera.
Palco mais recente da cruzada contra a iguaria, a cidade americana não está sozinha na campanha. O foie gras foi banido na Califórnia inteira e, no Brasil, em Florianópolis e Blumenau (as câmaras de vereadores de São Paulo, Taubaté e Sorocaba tentaram, mas não conseguiram). Sua produção (mas não a importação) é vetada em vinte países, entre eles Alemanha, Dinamarca, Índia, Finlândia, Irlanda, Israel, Noruega, Suécia e Reino Unido — este, o maior consumidor per capita, importa cerca de 200 toneladas por ano. Um dos efeitos da saída britânica da União Europeia, se e quando ela acontecer, é justamente o fim da farra, hoje liberada por força das regras do mercado único. “A alimentação excessiva de aves é uma prática excepcionalmente cruel, que não pode ser justificada como método de produção de artigo alimentício”, diz Sue Hayman, secretária britânica de Estado para assuntos de meio ambiente.
O consumo do foie gras é uma tradição antiquíssima, que remonta a pelo menos 2500 a.C. Há registros de sua presença nas refeições dos egípcios e romanos — estes alimentavam as aves com figos frescos durante seis meses para obter a iguaria de aparência rosada, textura macia e sabor amanteigado, que derrete na boca. Já então a alimentação era forçada, conforme mostram desenhos preservados. O aumento do consumo nos tempos modernos institucionalizou a gavagem, sobretudo na França, responsável por 80% da produção de foie gras no mundo. Mesmo lá há projetos de lei em defesa dos patinhos e gansos alimentados à força e fazendas que produzem a iguaria de animais soltos, engordados com ração reforçada, mas ingerida naturalmente. Essa versão orgânica, porém, não dá conta da procura, além de ser muito mais cara. A startup Suprême, criada para buscar soluções para o problema, anunciou em julho que conseguiu reproduzir foie gras utilizando células-tronco de ganso e pretende lançar o fígado de laboratório nos supermercados até 2023. “Estamos reinventando a mais tradicional criação francesa”, afirma um dos sócios, Nicolas Morin-Forest. Depois do hambúrguer sem carne, vem aí o foie gras sem crueldade.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662