Conhecido pelas frases de impacto, o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues (1912-1980) dedicou palavras de sabedoria aos bares do país: “O boteco é ressonante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele”. Era a linda louvação do aspecto democrático de uma das mais populares instituições culturais dos trópicos — os botequins. Sempre pontos de encontro para todo tipo de pessoa disposta a comer bons petiscos, tomar um chope gelado e trocar um dedo de prosa. Um movimento curioso, contudo, em filme que se estende, está transformando os tradicionais endereços em espaços gourmet. Alguns dos acepipes clássicos, como bolinhos e coxinhas, agora dividem o cardápio com opções mais sofisticadas, como tartar de polvo ou tornedor de filé-mignon. A cerveja perde espaço para os coquetéis, como o gim-tônica e o fitzgerald, queridinhos do público.
Há quem faça muxoxo, atrelado a exagerado romantismo, mas é exagero. É uma mudança que, de acordo com quem está à frente da tendência, oferece conforto a quem busca a tal da “experiência de boteco”, mas prefere ambiente mais aconchegante. “Além de trabalharmos com uma gastronomia e coquetelaria mais elaboradas, temos um perfil de público que vem até nós como destino, e não apenas passagem”, diz Isabela Progin, sócia da Mercearia Amauri, um dos pontos mais concorridos do bairro paulistano do Itaim. Executivos comem por lá na hora do almoço e voltam para o happy hour, enquanto famílias e grupos de amigos buscam o espaço nos fins de semana. A mistura de tradição com capricho parece funcionar, com lotação permanente.
Não se trata, é bom sublinhar, de fenômeno restrito à capital paulista. A “gourmetização” dos botecos chegou também ao Rio de Janeiro, em valsa interessante. A inspiração das casas em São Paulo vem dos botecos cariocas. E endereços tradicionais do Rio, ao inaugurar filiais em outras cidades, acabam retocando seus maiores clássicos. Pecado? Para os puristas, sim. Mas é parte do jogo abrir novas estradas para atrair um público cada vez mais exigente. É do jogo e, muitas vezes, é preciso se reinventar para sobreviver.
Alguns botecos, no entanto, se mantêm fiéis à proposta original, como exceções que confirmam a regra. É o caso do Bar do Luiz Fernandes, na Zona Norte de São Paulo, aberto em 1970. Foi crescendo e se espalhando e, aos fins de semana, o público lota o bar e as calçadas. Mas é tudo autêntico, do bolinho de carne ao balcão repleto de conservas e petiscos. O Boteco Rainha, do Rio de Janeiro, mas com filial em São Paulo, é outro exemplo. A decoração da unidade no Itaim replica a original, no Leblon. Embora o público seja diferente, com os engravatados faria limers em vez dos clientes de bermuda e chinelos, o clima descontraído é o mesmo. E talvez seja esse o aspecto mais relevante. O ambiente e a comida mudam, mas os botequins seguem na vanguarda do bem viver.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919