O suculento reinado da picanha vive dias nervosos. Uma novidade no mercado de carnes tem mudado o hábito de consumo, ao introduzir cortes tradicionalmente desdenhados nos churrascos brasileiros. A invasão é de peças extraídas sobretudo das dianteiras do boi, uma região musculosa devido à movimentação do animal. O destino do acém e da raquete (veja no quadro), por exemplo, era virar carne moída ou ensopado. A prosa mudou, e eles agora dividem espaço com talhos sofisticados e tradicionais em butiques de carne gourmet e restaurantes sofisticados. Pousam lindamente ao lado da picanha, é claro, mas também da alcatra e do ancho.
A tendência foi importada dos Estados Unidos — daí os nomes virem em inglês. Colou por aqui, pela descoberta dos sabores extraordinários. Os novos cortes são mais baratos (cerca de 30%) em relação aos considerados de áreas mais nobres, o que não significa descuido com a manipulação dos produtos, ao contrário. Mas a qualidade da manipulação os faz mais caros (aproximadamente 30%) que os cortes equivalentes e não repaginados. Tome-se o acém, rebatizado de denver steak. É insosso se não passar longo tempo na panela. O denver steak, porém, feito do miolo, eis o segredo, contém gordura e colágeno entremeados nas fibras, afeitos a derreter na hora de assar, atalho para a maciez. A raquete (flat iron steak, sua alcunha), de difícil mastigação, pela estrutura do tecido, tem a reputação atual de ser o segundo corte mais macio do boi, atrás do filé-mignon. O truque: no centro da peça há uma membrana um tanto intragável. Mas dividir a peça no sentindo do comprimento, bem em cima dessa membrana, a transforma em dois filés de primeira.
Na reputada rede de churrascaria NB Steak, a peça especial de raquete recebeu o nome da casa e hoje é o prato mais pedido pelos clientes que aos poucos retomam as visitas. O dono, o empresário Arri Coser, foi o primeiro a popularizar os novos cortes no Brasil. “Eles disputam por igual em números de pedidos com os convencionais”, diz Coser. A casa Swift também aderiu às modernas linhas, com a grife Swift Black. A expansão de ofertas anda de mãos dadas com uma excelência brasileira, a qualidade do gado. “O desenvolvimento de raças bovinas, como angus e hereford, somado às novidades da genética e aos cuidados com a alimentação, resultou em um melhor aproveitamento do animal”, diz o jornalista especialista em gastronomia J.A. Dias Lopes. Ele aponta na atual revolução passo histórico semelhante ao que ocorreu em outros momentos da evolução gastronômica.
A velha e boa picanha foi descoberta por acaso, na década de 70, no Brasil. Antes vendida como parte da alcatra ou do coxão duro, por ter uma grossa camada de gordura, era descartada. E, então, um açougueiro do frigorífico paulistano Bordon resolveu testar a ponta daquela parte gordurosa da alcatra e descobriu que era uma carne extremamente macia e saborosa. Há ainda outra explicação, mais divertida, quase folclórica. Um churrasqueiro argentino de São Paulo teria oferecido o corte ao industrial e playboy ítalo-brasileiro Baby Matarazzo Pignatari. Ao perguntar ao funcionário de onde vinha a delícia, ouviu: “Parte donde se pica la aña”. Em espanhol, “picar” significa “ferir com objeto pontiagudo” e “aña” é a haste de madeira com ponta de ferro usada na condução dos bois. A expressão teria dado origem ao nome picanha, a agora ameaçada picanha.
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715