Gabriel García Márquez, que só por decreto viajava para longas distâncias, escreveu numa crônica de 1980 que “o único medo que nós, latinos, confessamos sem vergonha e até com um certo orgulho machista é o medo de avião”. Havia uma explicação, na pena precisa do escritor colombiano: “Talvez porque seja um medo diferente, que não existe desde nossas origens, como o medo do escuro ou o próprio medo de que se perceba que sentimos medo”. E como é assim mesmo, a indústria de aviação, desde os seus primórdios, tratou de fazer da experiência de voar algo minimamente agradável, com serviço de bordo eficiente, o conforto possível e segurança — mas sobretudo boa comida, ao menos nas classes executiva e primeira. Na pré-história da invenção já era assim. Ao descer do sobrevoo parisiense no comando do balão dirigível nº 1, em 1898, Alberto Santos-Dumont saiu da cesta e informou, em perfeito francês, aos convivas de chapéu-panamá: “Nenhuma sala de jantar é tão bem decorada”. Em seguida, detalhou o cardápio que apreciara nas alturas: frango, carne, sorvete, bolo, chartreuse e champanhe.
De lá para cá, a humanidade lidou permanentemente com dois aperfeiçoamentos: voar e comer enquanto voa, porque, relembre-se, é um modo de aplacar a paúra. Até que a pandemia do novo coronavírus levou tudo pelos ares, ao desmontar negócios, a forçar sucessivas reinvenções. Na semana passada, a British Airways lançou uma insólita iniciativa: a entrega, em terra, por delivery, de refeições oferecidas em voo de cruzeiro. De entrada, peixe timbale, do lago Fyne, na Escócia, devidamente defumado. Depois, carne de vaca cozida ao longo de 48 horas, acompanhada de gratinado de batata, brócolis e chimichurri. Para finalizar, quatro tipos de queijos britânicos, chutney de figo e um pudim quente de pão com molho de baunilha, cravejado de chocolate e toques de licor de laranja. “Foi a melhor coisa que comi em meses”, resumiu Tom Robbins, editor de turismo do diário londrino Financial Times. O preço do pedido: o equivalente a 790 reais. Manter a engrenagem da cozinha das companhias funcionando é uma tentativa de evitar rombos maiores — estima-se que a escassez de voos tenha feito os serviços de catering perderem 60 bilhões de reais em todo o mundo, numa estimativa conservadora. É também uma ideia de marketing, a oferta de um mimo — caríssimo, ressalve-se — como lembrete de que, quando tudo passar, haverá capricho ainda maior dentro das aeronaves. Outras empresas também partiram para a entrega em domicílio, como a japonesa JAL, que oferece uma marmita bentô com iguarias orientais selecionadas e preparadas pelo badalado chef Daisuke Hayashi.
Receber em casa os pratos das companhias aéreas — no Brasil, ainda não — é também um lembrete de como já foi mais glamoroso voar, antes que as pressões econômicas subtraíssem qualidade — em 2018, ao retirar uma única azeitona das saladas, a American Airlines informou ter economizado 40 000 dólares anuais. Antes também que imposições de segurança, sobretudo depois do 11 de Setembro, substituíssem talheres de prata por versões de plástico. E o passado foi ficando para trás. “Nos anos 1960 e 1970, como os aeroportos eram ainda muito precários no Brasil, o modo de atrair clientela embarcada era aperfeiçoar o serviço de bordo”, diz Sérgio Prates, que durante dezenove anos, de 1971 a 1990, dirigiu esse setor na Varig, premiado em 1979 como o melhor do mundo pela reputada revista americana Air Transport World.
Dada a dificuldade de retomar o zelo da gastronomia em céu de brigadeiro, porque se tem voado menos — houve uma queda global de 70% das viagens —, a ideia de fazer chegar comida lá de cima aqui embaixo é boa. Mas convém um alerta: ainda que possa vir coisa deliciosa, o sabor de preparos afeitos às viagens intercontinentais é diferente do que experimentamos em terra. Uma investigação promovida pelo Fraunhofer Institute for Building Physics, da Alemanha, a pedido da Lufthansa, verificou que, na altitude, com baixa pressão e barulho, perdemos a sensação de dois sabores, o doce e o salgado. O azedo e o amargo ficam praticamente intactos e o umami, considerado o “quinto sabor”, é exponenciado. O umami — “de gosto saboroso e agradável”, em japonês — aparece em comidas como a sardinha e o molho de tomate. Não por acaso, pedir suco de tomate a bordo é uma tradição. O umami é gostoso, sem dúvida, mas pode conferir ao prato a ser experimentado na sala de jantar de casa aquele toquezinho exageradamente peculiar da comida de avião — e, então, cai-se das nuvens.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733