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As vinhas da ira: por que chineses começam a se despedir de Bordeaux

Após anos de vultosos investimentos, eles passam a vender vinícolas na região da França. Barreiras jurídicas e choque cultural afastam asiáticos

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h34 - Publicado em 22 out 2022, 08h00
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  • Foi a partir de 2008, quando os Estados Unidos e a Europa mergulharam na pior crise financeira em décadas, que o caso de amor da China com os vinhos franceses atingiu um novo patamar. Enquanto o Ocidente enfrentava os efeitos severos da tempestade econômica, a nação da Muralha produziu bilionários em ritmo jamais visto. Para os chineses muito ricos, configurou-se o cenário perfeito: de bolsos cheios, viam surgir inúmeras oportunidades no mercado. No ramo da vinicultura, as pechinchas pareciam estar concentradas especialmente em Bordeaux, região francesa responsável por nomes lendários como Château Margaux e Château Lafite Rothschild. Sedentos por bons negócios, os investidores chineses começaram a comprar, em ritmo acelerado, diversas vinícolas locais, mirando quase sempre propriedades que enfrentavam dificuldades financeiras. No auge do frenesi, 170 vinhedos, o equivalente a 2% de todas as propriedades vinícolas de Bordeaux, estavam nas mãos de chineses. Agora, contudo, o que se vê é um movimento que vai na direção oposta

    Há atualmente uma debandada de investidores chineses na região de Bordeaux. Alguns estão vendendo as propriedades a novos compradores, outros tiveram seus contratos encerrados por disputas judiciais, e um terceiro grupo simplesmente abandonou os châteaux, que agora estão fechados e sem produzir um único rótulo. O número exato de vinícolas que mudaram de mãos é incerto, mas são cada vez mais corriqueiros relatos de chineses que deixaram o sonho francês para trás.

    DECEPÇÃO - Vinhos do Château Loudenne: a propriedade voltou aos franceses -
    DECEPÇÃO – Vinhos do Château Loudenne: a propriedade voltou aos franceses – (Loudenne/Divulgação)

    O movimento é reflexo, pelo menos em boa dose, de uma medida recente do governo Xi Jinping, que decidiu aumentar a vigilância sobre o desvio de dinheiro e impor medidas rígidas de controle de capital para manter os gastos dos bilionários dentro das fronteiras chinesas. Foi assim que alguns investidores foram impossibilitados de realizar aportes — que já haviam sido aprovados, ressalte-se — na modernização das vinícolas, e viram as portas do mercado interno chinês se fecharem para os rótulos vindos da França.

    arte vinhos

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    A descoberta de escândalos de corrupção foi outro complicador para a permanência dos asiáticos nos territórios vinícolas franceses. A fabricante chinesa de bebidas alcoólicas Kweichow Moutai, com valor de mercado estimado em 500 bilhões de dólares, se desfez do Château Loudenne, um conhecido vinhedo em Bordeaux, após rumoroso caso de desvio de recursos. O episódio foi tão sério que levou à prisão perpétua do presidente da empresa, Yuan Renguo. Também é preciso destacar as barreiras impostas pelas divergências culturais. Muitos investidores chineses compraram vinícolas em busca de lucro rápido, mas a indústria do vinho, em especial na França, funciona em ritmo completamente diferente. Por se tratar de um produto agrícola, é preciso tempo — e paciência — para as investidas financeiras darem bons frutos. A própria rotina de trabalho é diversa. De acordo com o Ministério de Agricultura francês, os funcionários das vinícolas devem trabalhar apenas 35 horas por semana, e na França as determinações oficiais são cumpridas à risca. Para os chineses, acostumados ao sistema 996, que impõe uma jornada hercúlea das 9 às 21 horas durante seis dias por semana, foi um choque de realidade. “Mesmo que se trabalhe para garantir qualidade e uma boa distribuição, é impossível desassociar o mercado de bens de luxo da tradição”, afirma Alan Kuhar, professor de marketing da ESPM. “Em Bordeaux, onde os próprios vinhedos têm centenas de anos, não adianta impor uma lógica de produtividade.”

    Nem todas as histórias envolvendo investimentos chineses em Bordeaux, contudo, são marcadas por decepções. É o caso do Château Monlot, comprado em 2011 pela atriz Zhao Wei. A nova proprietária fez inúmeras intervenções na propriedade e quer tornar o espaço um destino enoturístico. O Château de Sours, comprado pelo empresário Jack Ma, fundador do grupo Alibaba, é outro exemplo bem-­sucedido. Mas eles são cada vez mais raros. No mundo dos vinhos, o encontro entre chineses e franceses não rende mais bons brindes.

    Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812

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