Por muito tempo, os vinhos tintos argentinos, especialmente aqueles feitos com a uva malbec, a variedade mais plantada no país, tinham um perfil específico. Eram tidos como potentes, com taninos fortes e explosão de aromas frutados derivados de longas passagens por barricas de carvalho. Foi assim que conquistaram espaço no paladar dos enófilos.
Contudo, o mercado mudou, e com ele as preferências dos consumidores. As safras argentinas seguiam o modelo tradicional de produção, bem-sucedido, e dele não se saía, por conforto. Hoje, há interesse exponencial por vinhos mais frescos, que não tenham dormido tanto tempo em carvalho. É uma tendência global que, aos poucos, chega à América do Sul. Os produtores passaram, então, a estudar com mais atenção os solos e climas de distintas regiões, de Mendoza à Patagônia. O resultado é uma pequena revolução em termos de sabor e de variedade. O salto instalou a viticultura austral entre as mais interessantes da atualidade. Mesmo os grandes nomes do vinho argentino, como Catena Zapata e Zuccardi, estão desenvolvendo rótulos mais frescos, produzidos em terroirs especiais, em pequenas parcelas dos vinhedos de maior prestígio. São produções limitadas, com preços naturalmente mais elevados, que mostram a busca por garrafas que unam as qualidades de clima, solo e ação humana. Os rótulos tradicionais dessas vinícolas, que ajudaram a fazer a fama argentina, continuam sendo feitos, e vendem muito bem. Com justiça, já que são ótimos. Mas agora deixaram de ser a única possibilidade disponível ao consumidor.
Parte dessa transformação está relacionada a uma das principais características da própria uva malbec, variedade francesa hoje pouco usada pelas bandas europeias, e da cabernet franc, outra casta que vem ganhando espaço na Argentina. É o que os especialistas chamam de “transparência à paisagem”. O que isso significa? “Dependendo de onde forem cultivadas, terão um sabor distinto”, diz Alejandro Vigil, enólogo da Catena Zapata. Ou seja, provar um Malbec de Gualtallary, em Mendoza, é uma experiência totalmente diferente de beber outro, com a mesma uva, feito na Patagônia. “Quando falamos de terroir, a experiência humana é fundamental”, diz Vigil. “Trata-se de entender o solo e mudar processos, delicadamente, ainda que tenham sido transmitidos de geração em geração.” É, portanto, movimento que leva tempo — e agora começa a entregar frutos.
Há uma iniciativa interessante, de mãos dadas com as novidades: a participação artesanal, miúda, mas influente, de jovens enólogos de vinícolas menores, à margem das grandalhonas. É o caso da Altos Las Hormigas, que começou sua história fazendo os tradicionais vinhos potentes e cheios de madeira. Há algum tempo, no entanto, mudou completamente de curso. As barricas foram queimadas em um tipo de ritual que significou o fim de uma era. Cada parcela é desenhada de acordo com o tipo de solo e, vistas do alto, juntas têm formas abstratas. A vinificação respeita as características particulares daquele pedaço de chão, e o resultado são vinhos mais frescos e saborosos. “É uma coisa de louco, mas é o caminho para fazer algo realmente extraordinário”, diz Federico Gambetta, responsável por cuidar dos vinhedos. O reconhecimento da crítica — e o de público, inclusive para importadores brasileiros — mostra que o bom caminho tem sido trilhado. Neste ano, o rótulo Jardín de Hormigas Los Amantes 2021 recebeu 100 pontos do rigoroso crítico britânico Tim Atkin. Embora seja um dos rótulos mais caros da vinícola (aqui deve custar ao menos 1 000 reais, quando chegar ao mercado, nas próximas semanas), é produzido com o mesmo cuidado que os vinhos mais simples e acessíveis. É o caso de Colonia las Liebres, feito com a uva bonarda, segunda variedade mais plantada entre argentinos, e que deve ser bebido jovem. “Os melhores vinhos são aqueles que podem ser abertos antes do prazo estimado para consumo”, diz Gambetta.
Um brinde, portanto, a uma das poucas boas notícias que brotam da Argentina, mergulhada numa inflação de 118% ao ano, na véspera de uma escolha duríssima, entre dois precipícios: manter na Presidência o populismo peronista de Sergio Massa, o candidato do governo, ou apostar nas maluquices de Javier Milei, o candidato da extrema direita, boquirroto e sem ideia clara do que pretende. O bom é que esse solitário aspecto positivo, e não é pouca coisa, pode ser engarrafado e degustado, com orgulho, mundo afora.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859