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A revolução silenciosa que está transformando os vinhos argentinos

Os clássicos tintos do país, fortes e frutados, dão lugar a uma nova geração, de versões mais frescas

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 17 set 2023, 08h00

Por muito tempo, os vinhos tintos argentinos, especialmente aqueles feitos com a uva malbec, a variedade mais plantada no país, tinham um perfil específico. Eram tidos como potentes, com taninos fortes e explosão de aromas frutados derivados de longas passagens por barricas de carvalho. Foi assim que conquistaram espaço no paladar dos enófilos.

Contudo, o mercado mudou, e com ele as preferências dos consumidores. As safras argentinas seguiam o modelo tradicional de produção, bem-sucedido, e dele não se saía, por conforto. Hoje, há interesse exponencial por vinhos mais frescos, que não tenham dormido tanto tempo em carvalho. É uma tendência global que, aos poucos, chega à América do Sul. Os produtores passaram, então, a estudar com mais atenção os solos e climas de distintas regiões, de Mendoza à Patagônia. O resultado é uma pequena revolução em termos de sabor e de variedade. O salto instalou a viticultura austral entre as mais interessantes da atualidade. Mesmo os grandes nomes do vinho argentino, como Catena Zapata e Zuccardi, estão desenvolvendo rótulos mais frescos, produzidos em terroirs especiais, em pequenas parcelas dos vinhedos de maior prestígio. São produções limitadas, com preços naturalmente mais elevados, que mostram a busca por garrafas que unam as qualidades de clima, solo e ação humana. Os rótulos tradicionais dessas vinícolas, que ajudaram a fazer a fama argentina, continuam sendo feitos, e vendem muito bem. Com justiça, já que são ótimos. Mas agora deixaram de ser a única possibilidade disponível ao consumidor.

APPELLATION - Com dois rótulos de regiões distintas, a linha da Altos Las Hormigas mostra a diversidade local. Este é feito em Paraje Altamira, terroir de Mendoza.
APPELLATION – Com dois rótulos de regiões distintas, a linha da Altos Las Hormigas mostra a diversidade local. Este é feito em Paraje Altamira, terroir de Mendoza. (./.)

Parte dessa transformação está relacionada a uma das principais características da própria uva malbec, variedade francesa hoje pouco usada pelas bandas europeias, e da cabernet franc, outra casta que vem ganhando espaço na Argentina. É o que os especialistas chamam de “transparência à paisagem”. O que isso significa? “Dependendo de onde forem cultivadas, terão um sabor distinto”, diz Alejandro Vigil, enólogo da Catena Zapata. Ou seja, provar um Malbec de Gualtallary, em Mendoza, é uma experiência totalmente diferente de beber outro, com a mesma uva, feito na Patagônia. “Quando falamos de terroir, a experiência humana é fundamental”, diz Vigil. “Trata-se de entender o solo e mudar processos, delicadamente, ainda que tenham sido transmitidos de geração em geração.” É, portanto, movimento que leva tempo — e agora começa a entregar frutos.

ZUCCARDI FÓSIL - Feito em San Pablo, uma das regiões mais frias do Valle de Uco, em Mendoza, reflete as característica do solo aluvial da região.
ZUCCARDI FÓSIL – Feito em San Pablo, uma das regiões mais frias do Valle de Uco, em Mendoza, reflete as característica do solo aluvial da região. (./.)

Há uma iniciativa interessante, de mãos dadas com as novidades: a participação artesanal, miúda, mas influente, de jovens enólogos de vinícolas menores, à margem das grandalhonas. É o caso da Altos Las Hormigas, que começou sua história fazendo os tradicionais vinhos potentes e cheios de madeira. Há algum tempo, no entanto, mudou completamente de curso. As barricas foram queimadas em um tipo de ritual que significou o fim de uma era. Cada parcela é desenhada de acordo com o tipo de solo e, vistas do alto, juntas têm formas abstratas. A vinificação respeita as características particulares daquele pedaço de chão, e o resultado são vinhos mais frescos e saborosos. “É uma coisa de louco, mas é o caminho para fazer algo realmente extraordinário”, diz Federico Gambetta, responsável por cuidar dos vinhedos. O reconhecimento da crítica — e o de público, inclusive para importadores brasileiros — mostra que o bom caminho tem sido trilhado. Neste ano, o rótulo Jardín de Hormigas Los Amantes 2021 recebeu 100 pontos do rigoroso crítico britânico Tim Atkin. Embora seja um dos rótulos mais caros da vinícola (aqui deve custar ao menos 1 000 reais, quando chegar ao mercado, nas próximas semanas), é produzido com o mesmo cuidado que os vinhos mais simples e acessíveis. É o caso de Colonia las Liebres, feito com a uva bonarda, segunda variedade mais plantada entre argentinos, e que deve ser bebido jovem. “Os melhores vinhos são aqueles que podem ser abertos antes do prazo estimado para consumo”, diz Gambetta.

TOCAYOS - Novidade da vinícola Lupa, é um blend de cabernet sauvignon e cabernet franc feito com leveduras nativas e passagem por concreto.
TOCAYOS – Novidade da vinícola Lupa, é um blend de cabernet sauvignon e cabernet franc feito com leveduras nativas e passagem por concreto. (./.)

Um brinde, portanto, a uma das poucas boas notícias que brotam da Argentina, mergulhada numa inflação de 118% ao ano, na véspera de uma escolha duríssima, entre dois precipícios: manter na Presidência o populismo peronista de Sergio Massa, o candidato do governo, ou apostar nas maluquices de Javier Milei, o candidato da extrema direita, boquirroto e sem ideia clara do que pretende. O bom é que esse solitário aspecto positivo, e não é pouca coisa, pode ser engarrafado e degustado, com orgulho, mundo afora.

Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2023, edição nº 2859

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