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A carne é forte

O gaúcho que aperfeiçoou as churrascarias e as fez viajar pelo mundo afirma que a gastronomia pode ser um ótimo negócio para acelerar o turismo no Brasil

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 8 mar 2019, 07h00 - Publicado em 8 mar 2019, 07h00

Gaúcho de Encantado, no Vale do Taquari, a 145 quilômetros de Porto Alegre, mas radicado há muitos anos em São Paulo, Arri Coser, 56 anos, começou a vida profissional lavando pratos em um rodízio de beira de estrada, na cidade de Aparecida, no interior de São Paulo. Virou passador (garçom que serve a carne assada no espeto), escalou os degraus da hierarquia e foi ocupando funções mais qualificadas. Em 1981, comprou uma churrascaria em Porto Alegre, a Fogo de Chão, a número 1, com a ajuda do pai e tendo como sócios o irmão e dois amigos. Com sorte, ganhou o equivalente a 500.000 dólares com um bilhete da Loteria Federal. Fez o dinheiro crescer e, em 2011, quando as churrascarias Fogo de Chão já eram 23, sete no Brasil e dezesseis nos Estados Unidos, ele e o irmão venderam o grupo a um fundo de investimento americano por 320 milhões de dólares. Era o maior negócio já fechado no país envolvendo restaurantes. Empreendedor incansável, Coser tornou-se, em 2013, sócio da churrascaria Na Brasa, de Porto Alegre, pertencente à irmã e ao cunhado. Trocou o nome do estabelecimento para NB Steak e o converteu em steakhouse requintada. Depois, enveredou pela cozinha italiana com o Maremonti Trattoria & Pizza. A quem interessar possa: o número do bilhete premiado da loteria era 09824.

A gastronomia continua a ser um bom terreno para fazer dinheiro? Como negócio, a gastronomia começou a ser descoberta no Brasil há duas décadas. Mas é um ramo que ainda precisa andar muito. Até poucos anos atrás, não dispúnhamos de faculdades e cursos de gastronomia. Os cozinheiros aprendiam o ofício nos restaurantes, lavando pratos ou com os colegas ao lado. Hoje, já existe uma formação na área. Países como França e Espanha usam sua culinária para atrair turistas e faturam bilhões com isso. O Brasil poderia seguir o mesmo caminho.

O que é preciso para transformar a gastronomia brasileira em fonte de divisas? Incentivar quem já está nela, dar mais liberdade aos chefs para explorá-la, estimular quem quer entrar no ramo. Mas, antes de tudo, simplificar a parte tributária. Enquanto isso não acontecer, não seremos competitivos. O empresário do ramo que não tem estrutura financeira para contratar contadores, advogados, nutricionistas e tudo o mais que o governo exige não consegue fazer sua empresa andar. Não sei se isso se daria por meio de um imposto único, ou de dois ou três tipos de tributo. Os tributos não baixam, nossos custos sobem e a cada dia precisamos de mais gente para realizar o que o governo deveria fazer e não faz.

Em compensação, o rodízio de churrasco, tipicamente brasileiro, conquistou o mundo… O rodízio de churrasco, originalmente chamado de espeto corrido, é um caso à parte, por ser um estilo de serviço inédito. Atencioso com o cliente, oferece-lhe grande fartura e deixa que se sirva à vontade. Enfim, é algo irresistível para uma clientela universal. A primeira caminhada do Brasil no exterior foi com o rodízio. Mas nossas cozinhas regionais têm potencialidade para obter sucesso lá fora, começando pelas do Nordeste, Minas Gerais, Espírito Santo e Pará, que ainda não saíram.

“O rodízio nasceu na beira das estradas do Sul, entre os anos 1950 e 1960. Minha geração foi responsável por trazê-lo para os grandes centros, polir, tirar os excessos”

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A que o senhor atribui o sucesso internacional da carne brasileira? O rebanho bovino nacional não para de crescer. Temos 222 milhões de cabeças de gado, que eram 146 milhões em 2000. Nossas raças mais numerosas são nelore, guzerá, gir, cangaian, brahman, tabapuã, sindi, indubrasil, angus, caracu e charolês. Todos os anos abatemos uns 30 milhões de cabeças em todo o país, de acordo com o IBGE. Isso nos torna o país número 1 em produção e exportação de carne bovina no mundo. A diversidade de raças e o aprimoramento genético e da finalização do boi fizeram o resto.

Qual a melhor raça para a produção de carne? O rebanho bovino do Brasil, em sua grande maioria, tem origem indiana, e nele se destaca a raça nelore. Animal mais rústico, adapta-­se com facilidade à maior parte do país. Nas regiões de clima temperado, porém, criamos as raças taurinas ou europeias, em especial as britânicas angus e hereford, que os churrasqueiros consideram melhores. Possuem características naturais de precocidade e uma carne com muita maciez, suculência e sabor. Mas o cruzamento dos zebuínos com taurinos também pode resultar em excelente carne. No Brasil, existem mais de 800 raças catalogadas. Quando o boi é bem selecionado, se ele comeu bem e foi abatido jovem, a carne resulta boa.

“A carne contribuiu para a evolução humana, para o crescimento da nossa massa cerebral. Sem falar no imenso prazer que nos proporciona saboreá-la”

Por que o rebanho brasileiro é predominantemente zebuíno? O zebu veio da Índia, onde adquiriu resistência para aguentar o calor. Ele também suporta pouca comida, seca e chuva. Adaptou-se muito bem às regiões do Brasil com altas temperaturas. Além disso, apresenta excelente taxa de resistência aos parasitos, sem falar da alta natalidade. Por isso foi o responsável pelo vertiginoso desenvolvimento da pecuária nacional. Já o gado europeu vive melhor em clima frio. Daí por que o encontramos de São Paulo em direção ao Sul.

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Por que o rodízio, que nasceu no Sul, foi aprimorado em São Paulo? Por causa do público consumidor. A exigência gastronômica do paulistano é muito alta, seja onde for, até no boteco. Isso fez com que o churrasco avançasse mais rapidamente na grande cidade brasileira. Nos anos 1950, o Rio Grande do Sul era absoluto na especialidade. Como o paulistano exigiu mais, seu churrasco avançou, estimulando a introdução de novos cortes de carne e diversificando a técnica de assar. Há também o poder de compra.

O rodízio não é de sua autoria, mas o senhor foi o churrasqueiro que fez dele um sucesso internacional. O rodízio nasceu na beira das estradas do Sul, entre as décadas de 50 e 60. Em seguida, difundiu-se em todo o país atrás da clientela da primeira hora, os caminhoneiros. Minha geração foi responsável por trazê-lo para os grandes centros, polir, lapidar, tirar os excessos. Continuamos fazendo isso até agora, para que ele tenha uma evolução cada vez melhor. Foram três as grandes fases do rodízio: a da lapidação da apresentação das carnes, a do aperfeiçoamento dos restaurantes e a da agregação de novas técnicas. Começamos a oferecer coisas que não existiam na época, como, por exemplo, o conforto. As churrascarias não tinham ar condicionado, carta de vinhos etc. Nos anos 90, com a abertura do mercado do Brasil para o mundo, tivemos acesso a todos os produtos que existiam lá fora.

Quais os itens mais importantes dessa evolução? No passado, o modo de assar era somente no espeto, e de um único jeito. Depois, vieram as grelhas, as carnes divididas por tempo de cocção, os cortes maiores foram para o espeto, até porque necessitam de mais tempo de fogo, como o costelão. A seguir, saímos da churrasqueira e fomos para o forno. Mais tarde, voltamos para a churrasqueira. Houve uma série de evoluções. No serviço, aconteceu algo equivalente: saímos literalmente de zero para dez. Hoje, as churrascarias de bom nível têm padrão internacional. A intermitência do serviço, aqueles espetos que não paravam de ir e voltar à mesa, foi disciplinada. Outro exemplo é a contratação de chefs. Comigo atua Pascal Valero, que trabalhou no exterior em três restaurantes estrelados no Guia Michelin. Agora ele está em uma churrascaria. Por quê? Pela busca da perfeição.

Antigamente, corria-se o risco de ser atropelado no salão pelos garçons das churrascarias de rodízio. Acredito que contribuí para mudar isso. Quando comecei a desenhar o modelo da minha atual rede de churrascarias, a NB Steak, implantei um novo conceito. Criei um menu degustação para o cliente selecionar os cortes que ele quer comer. Assim, o serviço só trará as carnes da sua escolha. Também eliminei o bufê de saladas. Cada uma chega em prato individual. Eu notava que, no sistema habitual de rodízio, às vezes o cliente não gostava de levantar-se da mesa e servir-­se no bufê; ou queria comer apenas uma saladinha; ou pretendia escolher um corte mais frugal, porque depois iria a uma reunião de trabalho.

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O que caracteriza um churrasco de qualidade? Carne boa, é óbvio, mas bem selecionada, temperatura certa do fogo e quantidade perfeita de sal.

Qual o papel do fogo? Assa-se a carne no carvão ou lenha, como fazem os uruguaios e argentinos, ou então na churrasqueira movida a gás, no forno etc. A vantagem da brasa é deixar o produto com um leve sabor defumado. Submete-se a carne inicialmente a uma temperatura de 450 ou 500 graus, para selá-la de ambos os lados. Tome-se como exemplo uma peça de 400, 500 gramas. Sela-se por quatro a sete minutos um lado, idem o outro. A seguir, levanta-se a peça, deixando-a sob uns 80 a 100 graus, a fim de que esquente por dentro. Para continuar a assá-la, a temperatura ideal do braseiro é 400 graus.

Grelha ou espeto? Depende do corte de carne. Alguns se saem melhor no espeto; outros, na grelha. A fraldinha, que no Rio Grande do Sul chamamos de vazio, resulta imbatível no espeto. Na grelha, ela nunca terá a mesma expansão, em consequência do suco retido em seu interior. Já a picanha varia. Se for cortada como bife de tira, ela deverá ser feita na grelha; na modalidade de medalhão, vai melhor no espeto. Com a costela acontece algo parecido: a de ripa pede grelha; o costelão, espeto, pois fica girando no fogo, assando por inteiro, até alcançar maciez.

A carne deve ser assada em peças grandes ou menores? Em grandes pedaços ela fica mais saborosa, mas tem de haver gente suficiente para o consumo rápido. Se passar o tempo, ficará ruim.

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Carne ao ponto ou malpassada? Ao ponto para malpassada, no caso da bovina. A de porco prefiro mais passada; a de frango, sempre ao ponto. Já a de cordeiro pode ser rosinha.

Os vegetarianos e veganos começam a incomodar? Os vegetarianos, partidários da alimentação exclusivamente vegetal, e os veganos, que rejeitam a comida de origem animal, continuarão a ter seus restaurantes. Mas não vão afetar nosso negócio, pois constituem minoria e devem permanecer como tal. A humanidade come carne há milhares de anos e seguirá assim. Nosso sistema digestivo aprendeu a digeri-la com muita eficiência. A carne contribuiu para a evolução humana, para o crescimento da nossa massa cerebral, devido à grande quantidade de nutrientes e proteínas. Sem falar no imenso prazer que nos proporciona saboreá-la.

Come churrasco todos os dias? Quase todos os dias, desde criança.

E o que diz seu médico? Ele é meu cliente. Às vezes comemos churrasco juntos.

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Publicado em VEJA de 13 de março de 2019, edição nº 2625

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