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Uma voz da Europa

Talvez o mais arguto intelectual da Alemanha, o quase nonagenário Hans Magnus Enzensberger revisita os agitados anos 60 em 'Tumulto', belo livro de memórias

Por Nelson Ascher
Atualizado em 10 Maio 2019, 07h00 - Publicado em 10 Maio 2019, 07h00

Hans Magnus Enzensberger, poeta, ensaísta, tradutor, editor, escritor alemão que chega neste ano aos 90, é provavelmente o mais agudo e versátil intelectual europeu vivo. Talvez seja ainda o último grande autor que, tendo conhecido o mundo de antes da II Guerra Mundial, contribuiu de várias maneiras para entender e moldar a cultura e a política do cenário que emergiu daquela catástrofe. É um intelectual à moda antiga: sem ligação com alguma instituição famosa e sem ostentar títulos ou posições acadêmicas, sua principal forma de comunicação com o público é a palavra escrita não especializada nem vazada em algum tipo de jargão. Parte substancial de sua obra está traduzida no Brasil — tanto os ensaios, que discutiram do socialismo real à sociedade de consumo e do gangsterismo e terrorismo tradicionais ao terror islâmico atual, quanto sua poesia, que, descendendo diretamente do modernismo conversacional, seco e analítico, tem se mantido por mais de meio século num altíssimo nível de lucidez e precisão, como se pode constatar no seu longo poema narrativo O Naufrágio do Titanic. Infelizmente, porém, seus livros, espalhados por diversas editoras, não têm sido republicados.

LIVRO – ‘Tumulto’, de Hans Magnus Enzensberger (tradução de Sonali Bertuol; Todavia; 264 páginas; 64,90 reais ou 48,90 reais na versão digital) (//Divulgação)

O recém-lançado Tumulto é um volume de memórias — memórias seletas, seletivas, escritas às vezes meio a contragosto, com um pé atrás. Como se poderia esperar de um autor como Enzensberger, o livro fala muito mais do que ele viu que de si mesmo. Não se trata de uma obra confessional ou intimista. Enzensberger é um mestre do ensaio, forma que cultivou e aperfeiçoou seguindo compatriotas que admirava, como o poeta Gottfried Benn ou o crítico Walter Benjamin. Em um livro anterior, A Outra Europa (Companhia das Letras), reunião de ensaios memorialísticos dos anos 70 e 80, ele já falava dos diversos países europeus onde viveu por algum tempo (Suécia, Noruega, Espanha, Portugal). Em Tumulto, o poeta volta a percorrer os eixos cruzados da geografia e da história, que, determinando seus encontros e desencontros, acabam encaminhando e desencaminhando seu destino pessoal.

O tumulto a que se refere o título é, de fato, um conjunto convergente de tumultos: a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, a agitação política dos anos 60. Enzensberger estava em Cuba quando começou (ou se evidenciou) a crise da revolução. No plano pessoal, encerrou um primeiro casamento e apaixonou-­se por uma jovem russa. Tudo isso começa quando ele é convidado, no início daquela década, para sua primeira viagem à União Soviética. Participaria de um congresso literário, cujos pontos altos, afinal, seriam o encontro dos participantes com Nikita Kruschev — e o de Enzensberger com uma poeta, Margarita Aliguer, e com sua filha, Maria (ou Masha), catorze anos mais nova que ele, com quem se envolve imediatamente.

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Crescer na Alemanha dos anos 30 mostrou ao poeta, desde muito cedo, todo o potencial destrutivo do totalitarismo. Na juventude, ele se inclinou para a esquerda, o que era basicamente inevitável não só por causa da experiência de um regime de extrema direita, mas porque então e ainda por várias décadas o grosso da criatividade e da inteligência cultural estaria à esquerda. Mas a cautela de Enzensberger — intelectual dotado de ceticismo e de um espírito analítico capaz de examinar detalhes que seus pares costumam ignorar — permitiu-lhe ver claramente a União Soviética e seu bloco (e, mais tarde, Cuba) sem ilusões, desde o primeiro encontro.

A aptidão de Enzensberger para selecionar o fato revelador num ensaio, a imagem exata no poema, o momento certo numa narração sempre foi um de seus trunfos. Nestas memórias, é deixando que suas reflexões fluam ocasionalmente com uma indisciplina medida que o autor entremostra como se localiza o ponto de equilíbrio do qual é possível acompanhar o rebuliço geral sem sair dele. Essa perspectiva faz do escritor quase nonagenário uma testemunha e ao mesmo tempo um analista sem igual de nosso tempo.

Publicado em VEJA de 15 de maio de 2019, edição nº 2634

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