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O eterno e o efêmero

A discussão entre puristas do cinema e defensores do streaming ainda vai se estender — mas 'Roma' é um argumento forte em favor dos novos meios de exibição

Por Isabela Boscov Atualizado em 21 dez 2018, 07h00 - Publicado em 21 dez 2018, 07h00
…OU ESCOLHA: Na TV, em troca do impacto visual, a oportunidade para o diretor tirar seu projeto do papel (Carlos Somone/Netflix)

Nos planos muito abertos, que abarcam vários cômodos da mesma casa ou, às vezes, vistas que vão até o horizonte de uma praia, de um bairro de periferia, de um parque de diversões rústico e mesmo de uma fazenda, é quase sempre Cleo (Yalitza Aparicio) o eixo que conduz a movimentação da câmera: a empregada Cleo, tão ativa mas também tão silenciosa e serena, tão à margem da família mas tão central para ela, em Roma (México/Estados Unidos, 2018) não é mais a eterna coadjuvante, e sim o objeto da curiosidade vívida do diretor Alfonso Cuarón, que por meio dela reconstrói um ano crucial — entre 1970 e 1971 — da sua infância, da trajetória do seu México natal e também da vida da própria Cleo. Uma vida que Cuarón percebe como quase secreta, ou pelo menos nunca desvendada: entre lavar o quintal e estender a roupa no terraço, entre pôr as crianças na cama e apartar as brigas delas, entre fazer o jantar e servir um chá ao patrão, quem seria Cleo? Fotografado pelo próprio diretor em um preto e branco de efeito pictórico assombroso, Roma é um ato de restauro do passado e de construção da memória, em que observações que só muito mais tarde o menino Cuarón poderia articular — por exemplo, a relação perversa entre cor da pele e condição socioeconômica — se entrelaçam com as impressões formadas décadas atrás e preservadas intactas. É um filme que, desde o âmago, resiste ao efêmero. E, no entanto, exceto por algumas sessões especiais, Roma não pode ser visto na tela grande, mas apenas na plataforma que parte da indústria cinematográfica considera o emblema do descartável e do transitório — a Netflix, que o produziu. Roma é cinema no seu mais perene; contudo, a levar ao pé da letra certas definições mais castiças, não poderia ser cinema. Pior, representa um dos instrumentos da sua destruição.

Deixem-se de lado as vozes mais exaltadas e, ainda assim, a discussão é complexa. Em setembro, Roma saiu vencedor do Festival de Veneza, numa premiação que não apenas reconhece os méritos artísticos do filme, como é uma declaração política: depois de o espanhol Pedro Almodóvar, presidente do júri da edição de 2017 do Festival de Cannes, ter feito um libelo contra a presença entre os concorrentes de dois filmes lançados pela Netflix, o festival francês decidiu que não mais aceitará a inscrição de produções que não se destinam ao lançamento em cinema. Naquela ocasião, os filmes eram Okja, do expoente sul­-coreano Joon-Ho Bong, e Os Meyerowitz, de Noah Baumbach, um dos maiores nomes independentes americanos.

DO OSCAR PARA A NETFLIX – Sandra Bullock em Bird Box, de Susanne Bier: as estrelas agora cabem na tela do celular (Saeed Adyani/Netflix/.)

Hoje, esse elenco incluiria já uma fiada de cineastas de muito prestígio: o inglês Paul Greengrass, da série Bourne, que lançou na Netflix 22 de Julho; os irmãos Joel e Ethan Coen, que estrearam na plataforma com A Balada de Buster Scruggs; o escocês David Mackenzie, de A Qualquer Custo, que rodou para o streaming Legítimo Rei, com Chris Pine; a dinamarquesa Susanne Bier, ganhadora do Oscar por Em um Mundo Melhor, que neste dia 21 estreia na Netflix a ficção científica Bird Box, com Sandra Bullock; o americano J.C. Chandor, de Margin Call e O Ano Mais Violento, que em março lançará na plataforma Triple Frontier, com elenco encabeçado por Ben Affleck e Oscar Isaac. Sem falar, é claro, no próprio Cuarón, um dos cineastas mais relevantes e inovadores desta geração, vencedor dos Oscar de montagem e direção por Gravidade, em 2014 (o mesmo filme, aliás, pelo qual Sandra Bullock foi indicada ao prêmio da Academia).

De projeto em projeto, assim, o cinema cede terreno à força inexorável do streaming. Os temores que esse aliciamento suscita são, em parte, legítimos. O cinema é uma experiência coletiva por excelência — e é também uma experiência de submissão voluntária, na qual o espectador se deixa subjugar pelo gigantismo da imagem e pelo ambiente sensorial do filme. Com um televisor de bom tamanho e as luzes da sala apagadas, já seria uma situação irreplicável; que dirá, então, numa tela de computador ou numa de smartphone — as telas que, hoje, dominam os hábitos das gerações mais jovens.

OS DONOS DAS SALAS – Josh Brolin em ‘Vingadores: Guerra Infinita’: os super-heróis hoje colonizam os multiplex (Film Frame/Marvel Studios/.)

Mas, de outro lado, há a realidade dos fatos. Pelo menos por ora, a existência dos cinemas está garantida pelas megaproduções — sobretudo as de super-heróis, como Vingadores: Guerra Infinita, cuja bilheteria mundial foi de 2 bilhões de dólares, a maior do ano — que colonizam com ímpeto esmagador os multiplex. O restante da produção cinematográfica, entretanto, vinha enfrentando sérias dificuldades para se viabilizar e obter um mínimo de projeção. Em um primeiro momento, roteiristas, atores e diretores que estão fora dos círculos de produção comercial de largo consumo foram exercer seus talentos consideráveis nas séries — as de TV a cabo e cada vez mais as de stream­ing. Agora, com a briga de plataformas como Netflix, Amazon e Hulu para se imporem como produtoras de cinema com letra maiúscula, esses profissionais encontram no streaming uma avenida larga pela qual escoar seu trabalho, ao passo que, com seus altíssimos custos de distribuição e marketing, o lançamento em cinema se tornou um gargalo estreito. Por isso, para cada cineasta que rejeita a ideia, levantam-se dez outros dispostos a trocar um ideal de fruição de seus filmes nas salas com perfeitas condições de projeção por mais liberdade criativa e financeira e, em última análise, pela simples possibilidade mesmo de tirar seus projetos do papel.

Também na outra ponta, a do espectador, há benefícios claros. Mesmo na Europa e nos Estados Unidos, os pequenos municípios e as províncias são deficientes em salas de exibição. No Brasil, a carência é aguda: os números perfazem uma sala para cada 65 000 habitantes, contra uma para cada 8 000 nos Estados Unidos. O streaming e o on­-demand proporcionam, assim, uma democratização verdadeira do acesso à produção audiovisual. Por prescindir de equipamento especial e de suporte físico, inclusive, essa democratização é significativamente mais abrangente e mais imediata que a proporcionada em outros tempos pelo VHS, pelo DVD e pelo Blu-ray. Agora que essa avenida se abre para joias como Roma, as divisas ficam ainda mais conflagradas: seria difícil que, com seu pequeno apelo comercial, um projeto de indiscutível gabarito criativo como o de Cuarón encontrasse guarida nos esquemas tradicionais de financiamento. E o ano de 2018, assim, provavelmente teria ficado privado de um de seus pontos altos.

Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614

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