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Moacyr Luz relata o drama vivido por Aldir Blanc nos últimos dias de vida

Amigo e parceiro da vida toda, o músico acompanhou a busca desesperada da família do artista, vítima da Covid-19, por uma vaga de UTI

Por Sofia Cerqueira Atualizado em 15 Maio 2020, 15h39 - Publicado em 15 Maio 2020, 15h37

Depoimento do cantor e compositor:

“Está difícil assimilar tudo o que aconteceu. Eu e o Aldir Blanc tínhamos um combinado. Quem dos dois morresse primeiro, iria fechar a Rua Garibaldi, na Zona Norte do Rio, onde ele sempre morou e onde fui seu vizinho de prédio por 23 anos, chamar os amigos e fazer uma festa para botar para quebrar. Mesmo nas nossas brincadeiras, sempre achei que eu iria primeiro, embora fosse mais novo. Para mim, ele era um gênio imortal. Uma pessoa inigualável na hora de falar besteiras, mas também incomparável em fazer poesia com temas sérios e importantes. Sabia tudo do vagabundo, do professor, do bêbado, do equilibrista. Só que não houve festa, velório ou uma música sequer. Aldir, como milhares de brasileiros desfavorecidos que ele tanto deu voz nas letras que compunha, perdeu a batalha contra a Covid-19 em um hospital da rede pública do Rio, depois de precisar lutar por uma vaga na UTI.

Mesmo sem pisar na rua desde março e do grupo de risco também, participei de perto toda a aflição da família. No dia 12 de abril, enquanto zanzava em casa, em meio à quarentena, meu celular piscou com uma mensagem. Era um músico amigo dizendo que um conhecido tinha visto o Aldir na emergência do Hospital Miguel Couto, no Leblon. Pensei: isso é fake. Não era. Liguei imediatamente para a mulher dele, a Mari, que me atendeu em uma chamada de vídeo, usando máscara, com olhar assustado e lágrimas nos olhos. Percebi ali que era sério. Ela disse que não havia me avisado antes porque, inicialmente, achava que era uma coisa simples. Ao procurar atendimento com uma infecção urinária, ele foi diagnosticado com pneumonia e internado. Rapidamente, o quadro se agravou. Enquanto Mari, as filhas de Aldir, eu e vários outros amigos nos mobilizávamos desesperadamente para tentar transferi-lo para uma UTI, também não conseguia parar de me lembrar das particularidades e da inteligência do meu amigo.

A última vez que nos falamos foi em 5 de abril, meu aniversário e cinco dias antes de ele ser internado, quando cobrei dele a letra de uma música que tinha feito após o Carnaval e brinquei: “Para você esse negócio de coronavírus é indiferente. Você vive recluso mesmo”. Rimos os dois e, antes de desligar o telefone, Aldir ainda me falou para cuidar da minha glicose, que andava alta. Embora tenha abandonado a medicina, ele exibia uma cultura na área de impressionar catedráticos. Lia compulsivamente sobre tudo, inclusive novos remédios e tratamentos. Como a maioria dos músicos que conheço, todos autônomos, não possuía plano de saúde. Talvez não quisesse se comprometer com um gasto fixo tão alto ou achasse que nada de mal o aconteceria. Na mesma situação de tantos outros brasileiros que não têm condições de ir para um hospital particular, enfrentou um sistema em crise em meio a uma procura descomunal. No dia 14 de abril, naquela agonia por uma vaga UTI, uma de suas filhas, Isabel, chegou a fazer um vídeo com um apelo nas redes sociais. Era uma corrida contra o relógio.

Cada um fez o que pôde, saiu ligando para todo mundo que conhecia, pedindo ajuda para um e para outro. Por fim, ele foi transferido para um leito no Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, onde precisou ser intubado. Inicialmente, eu acompanhava tudo por intermédio da sua mulher, mas ela também precisou ser internada com a Covid-19. Felizmente já teve alta. No caso do Aldir, na verdade, descartaram coronavírus no princípio. Ninguém sabe dizer se estava com a doença ou se foi contaminado naquele ambiente. Durante o período em que ficou na UTI, um amigo que trabalha no hospital me passava os boletins e, nos últimos dias, me preparava: “agora, só um milagre”. Eu ficava quieto e pensava que não era possível que o Aldir fosse morrer feito uma estrela que, do nada, some no infinito. Não queria acreditar. Ele não era só um compositor, letrista, poeta e cronista, mas um profundo conhecedor do ser humano. No dia 4 de maio acordei com a notícia da sua partida, mas não consigo assimilar. Volta e meia vem à cabeça o trecho de uma música e me pego pensando “vou falar isso com o Aldir”.”

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