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Fotógrafo Pedro Martinelli assiste ao filme ‘Xingu’

De 1971 a 1973, Martinelli acompanhou a última expedição dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Bôas no norte de Mato Grosso e sul do Pará

Por Da Redação
7 abr 2012, 09h24

Por três anos, o fotógrafo Pedro Martinelli acompanhou a última expedição dos irmãos Cláudio e Orlando Villas Bôas no norte de Mato Grosso e sul do Pará. A viagem, que se estendeu de 1971 a 1973 com breves interrupções, tinha por objetivo o primeiro contato com os índios kranhacarores, que somente anos depois se descobriu chamarem panarás – como é comum, o primeiro nome da tribo fornecido aos brancos foi o nome dado a eles por seus inimigos. Os panarás ocupavam uma área de floresta pela qual passaria a BR-163, a Cuiabá-Santarém. Pedrão, como era chamado por Cláudio e ainda hoje é conhecido pelos amigos, tinha então 20 anos. Foi enviado pelo jornal O Globo para cobrir a épica viagem dos sertanistas, que foi documentada também pelo então fotógrafo de VEJA Luigi Mamprin. Durante a longa espera dos Villas Bôas pelo encontro com os “índios gigantes”, Pedrão passou a se sentir adotado por Cláudio, o mais arredio, sagaz e idealista dos irmãos. “Ele foi meu pai de mato”, diz. Passados 39 anos, o fotógrafo, autor das imagens destas páginas, assistiu à exibição de Xingu. A seguir, seu relato ao editor Leonardo Coutinho sobre o que viu na tela e, sobretudo, viveu ao lado dos Villas Bôas.

“Fui ao cinema com o pé atrás, com medo de encontrar uma ficção cheia de clichês. Mas fiquei muito impressionado com o que vi. Principalmente com a imagem do Cláudio, que sempre foi um grande injustiçado. Orlando tinha mais visibilidade. Não que não a merecesse, mas o fato de ele ser o relações-públicas acabava por ocultar a verdadeira dimensão de Cláudio na história. Orlando era o sujeito capaz de falar com os militares, atender os jornalistas e mostrar para o mundo a importância do que eles estavam fazendo pelo interior do Brasil. Era uma pessoa extremamente agradável, capaz de contar as histórias mais saborosas. Cláudio não era assim. Era recluso, não dava a mínima para os militares e não tinha paciência com repórteres. Mas era ele o maestro. Deu o conteúdo e o sentido ao trabalho dos Villas Bôas. Eles foram brasileiros extraordinários. O filme me surpreendeu justamente nisso. Dá a medida exata de cada um. O ator João Miguel ficou tão parecido com Cláudio e conseguiu reproduzir seu temperamento com tamanha fidelidade que eu me senti de novo dentro do mato, com ele. Cláudio sofria muito e raramente extravasava esse sentimento. Há uma cena no filme em que, depois de tomar um porre, ele se vê sozinho em uma praia, largado. É uma representação perfeita da impotência dele diante do que ele previa sobre o que ia acontecer com os kranhacarores. Tanto Cláudio quanto Orlando sabiam que, embora a expedição tivesse por objetivo salvar os índios, o contato em certa medida resultaria no fim daqueles que eles imaginavam ser os últimos isolados. Essa dor é visível no filme.

Cao Hamburguer: Em ‘Xingu’, os irmãos Villas-Bôas são heróis imperfeitos

“Naqueles três anos, fui aprendendo a admirar os dois. Cláudio era meu herói. Foi meu paizão de mato. Aprendi a andar no mato e a gostar disso com o meu pai de verdade, Pedro. Mas, com Cláudio, aprendi o que é uma expedição. A ter método, passar oito meses debaixo de chuva e comer macaco cozido, moqueado, de qualquer jeito. Na verdade, era uma delícia. Cláudio não pescava e não caçava, mas gostava de comer e cozinhar de tudo. Temperava um feijão maravilhoso com uns condimentos que ele escondia ninguém sabe onde. Nos dias em que batia saudade da cidade, a gente construía na imaginação caminhos que nos levavam aos nossos restaurantes preferidos em São Paulo. Ele adorava ‘ir’ ao Gigetto. A imaginação era tão poderosa que a gente até falava com os garçons e pedia o prato. Eu saí do mato umas três vezes, para ver minha mãe. Orlando viajava muito também. Cláudio, não; estava sempre lá no mato.

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Galeria de fotos do filme ‘Xingu’

“Enquanto Orlando negociava com os militares e tentava atrasar a obra da Cuiabá-Santarém, ou até mesmo desviar o trajeto da estrada – esse tipo de esforço político era fundamental para o trabalho deles -, a tática do Cláudio era morar no quintal dos índios e ali marcar presença. Nunca ele tomava a iniciativa do contato. Passamos meses nas redes, ouvindo gritos dos índios, sem tomar nenhuma iniciativa. A vida era amarga. Cláudio resistia. Não tinha pressa, pois também ele queria adiar o contato. Até o dia em que os índios vieram até nós, em 4 de fevereiro de 1973. Cláudio foi sozinho ao encontro deles. Eu vinha atrás em outro barco. Um deles usava um colar preto e branco que eu deixara pendurado em um varal de presentes para os índios. Esse índio esticou o arco e apontou uma flecha na cara do Cláudio, que estava sem camisa e desarmado – esses contatos eram as únicas ocasiões em que ele andava sem arma. Cláudio não se moveu. Foi como um teste para mostrar quem mandava ali.

“Pouco antes fiz a fotografia que mudou minha vida e definiu minha carreira. Sôkriti (o índio que aparece na página anterior) apareceu do nada na mata. Foi a primeira visão de um panará. Depois do contato, a euforia era tamanha que os índios xinguanos que acompanhavam a expedição viraram as canoas, de tanto pular dentro delas. Minhas câmeras e filmes foram para o fundo do rio. Vi minha vida terminar. Mas todos se jogaram na água para recolher na lama o meu equipamento.

“Essa é uma história difícil de ser repetida. Hoje não há mais sertanistas, e ninguém quer mais ir para o mato. Cláudio e Orlando foram mestres, e merecem receber a devida atenção.”

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