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Feitos um para o outro

'Casal Improvável' inspira-se na era de ouro de Hollywood para fazer comédia — e romance — como há tempos não se via

Por Isabela Boscov Atualizado em 25 jun 2019, 17h14 - Publicado em 21 jun 2019, 07h00

Charlotte Field é a mulher mais poderosa do planeta: é a mais jovem secretária de Estado da história e é tão apta que consegue fazer um comandante em chefe abestalhado como o presidente Chambers (Bob Odenkirk) parecer capaz de chefiar e até mesmo de comandar. Chambers, aliás, planeja dar um passo adiante (segundo ele mesmo): ex-­ator de televisão, ele quer reverter os altos índices de aprovação de seu governo em uma carreira no cinema ao fim do mandato. “Difícil; não lembro de ninguém além de George Clooney e de Woody Harrelson que tenha dado esse salto”, comentam personagens diversos em ocasiões diferentes, sempre com aquela ironia metalinguística que, quando bem usada, fica mais engraçada a cada repetição. E não há nada que Casal Improvável (Long Shot, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país, não use bem.

Na verdade, o diretor Jonathan Levine usa tudo superlativamente bem, desde os muitos talentos particulares do par que dá título ao filme — formidavelmente interpretado por Charlize Theron e Seth Rogen — até a água cristalina da fonte em que bebe: a comédia romântica dos anos 30 e 40 (pode-se esticar a cronologia até os 50), responsável majoritária e direta por esse período ter ficado conhecido como a era de ouro de Hollywood. Ouro mesmo: nos diálogos, nas atuações, na direção de craques como Frank Capra, Ernst Lubitsch, Preston Sturges, Howard Hawks e Billy Wilder e, acima de tudo, no espírito traquinas e avançadinho com que tratou o romance e militou por uma linhagem de mulheres que o feminismo atual não reconhece — liberadas, determinadas, donas do seu nariz, desdenhosas de proteção, salutarmente sexualizadas e mil vezes mais espertas que os irresistíveis pares amorosos que elas não procuraram, mas apenas calharam de encontrar. Grosso modo, a comédia romântica da era de ouro é a história de como Claudette Colbert dá um nó em Clark Gable (Aconteceu Naquela Noite, 1934), Katharine Hepburn exaspera Cary Grant (Levada da Breca, 1938) e Rosalind Russell o enfrenta (Jejum de Amor, 1940), Jean Arthur enrola Gary Cooper (O Galante Mr. Deeds, 1936), Barbara Stanwyck trapaceia Henry Fonda (As Três Noites de Eva, 1941) e Marilyn Monroe enlouquece Tom Ewell (O Pecado Mora ao Lado, 1955) — para ficar em um número mínimo de exemplos.

PADRÃO-OURO – Gary Cooper e Jean Arthur em ‘O Galante Mr. Deeds’: travessos (//Divulgação)

Também as décadas de 80 e 90 foram pródigas em comédias românticas (algumas das quais fizeram história, como Uma Linda Mulher), embora aí as heroínas já tivessem ficado um tanto mais aprincesadas. Depois que Julia Roberts, Meg Ryan e Sandra Bullock abdicaram do seu reinado, porém, o gênero atrofiou de vez sob o efeito de enredos parvos e preguiçosos, até virar o derrogatoriamente chamado “filme de mulherzinha”. Eis então o feito que Casal Improvável cumpre, sozinho, pela primeira vez em muito tempo: restituir tanto o romance quanto a comédia à sua concentração máxima, e então combiná-­los de maneiras surpreendentes, ao mesmo tempo agudamente inteligentes e saborosamente tolas — maneiras que podem ser apreciadas com igual prazer por qualquer parcela da plateia, como o eram no auge distante da comédia romântica.

Charlize, que nunca fez a linha flor de estufa — bem ao contrário —, calibra à perfeição a competentíssima, elegantésima e lindíssima Charlotte, que, para ser uma candidata dos sonhos na próxima eleição presidencial, só precisa dar um jeito no aceno, que lembra um limpador de para-brisa desregulado, e reforçar o senso de humor. Não fosse isso, e ela nunca teria se reaproximado de Fred Flarsky, de quem foi babá quando ele tinha 13 anos e ela, 16. É evidente que, sendo Fred humano, foi impossível a ele evitar a paixão por Charlotte na adolescência, e é igualmente impossível evitá-la agora que ele tem de andar junto dela o tempo todo ao redor do mundo, enxertando piadas nos discursos que preparam o terreno para o anúncio de sua candidatura. Para efeitos práticos, Charlotte e Fred são antípodas. Mas Seth Rogen, que brilhou também como par de Katherine Heigl em Ligeiramente Grávidos, de 2007, interpreta o repórter desobediente, indócil, rechonchudo e largadão como se dentro dele morasse um Gary Cooper — um apolo embriagador, cavalheiresco e bem-humorado. Sendo humana, portanto, Charlotte não poderia resistir a ele, apesar do agasalho horroroso que ele nunca tira, da cabeleira emendada com a barba e dos resultados das pesquisas, que condenam o namoro como veneno eleitoral.

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Jonathan Levine, do ótimo 50% e do improvavelmente doce e divertido Meu Namorado É um Zumbi, também tem ouro nas mãos, portanto: um par central que é um estrondo, um roteiro que por um lado consegue juntá-lo de maneira crível e por outro lado nunca perde uma oportunidade de explorar o nonsense da ideia toda, e um elenco de apoio que faz cada cena contar. De sua parte, Levine entra com um ritmo quase infalível para a comédia e uma franqueza — às vezes até uma saudável vulgaridade — que, com sua acidez, combate o adocicamento do gênero. Seu maior feito, porém: ainda que o mundo olhe para Charlotte e Fred e continue vendo opostos, o espectador — assim como eles dois — sabe que eles nasceram um para o outro.

 

Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640

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