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Detetive da verdade

Em duas novelas, Friedrich Dürrenmatt subverte as convenções das histórias criminais para mostrar que até o mais comum dos homens é, em si, um mistério

Por Eduardo Wolf
Atualizado em 5 abr 2019, 07h00 - Publicado em 5 abr 2019, 07h00

Em uma cena de O Juiz e Seu Carrasco, romance policial do escritor suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), o detetive Bärlach — então muito jovem — argumenta com seu amigo e futuro rival, Gastmann, que o crime é um ato de estupidez, pois a imprevisibilidade das ações humanas e as imperfeições da espécie tornariam impossível cometer um crime perfeito. Eis por que os crimes eram todos bem resolvidos. Quase uma década depois, em A Promessa (1958), que agora ganha no Brasil edição conjunta com A Pane (1955), Dürrenmatt apostaria em hipótese radicalmente contrária à de Bärlach. Logo na abertura da novela, o doutor H., ex-comandante da polícia de Zurique, afirma a seu interlocutor: “Os fatores de interferência (em um caso) são tão frequentes que não é raro que apenas a sorte profissional e o acaso decidam em nosso favor. Ou em nosso desfavor”. As palavras céticas em relação à solução dos crimes são endereçadas a ninguém menos que o próprio Dürrenmatt, escritor, autor de livros policiais e personagem de sua obra.

Pouco tempo antes, na vida real, o autor suíço, celebrado por suas peças teatrais — frequentemente, é comparado a Bertolt Brecht —, havia escrito o roteiro de um filme policial, Es Geschah am Hellichten Tag (“Aconteceu em Plena Luz do Dia”). Apesar de bem recebido por público e crítica, o trabalho não agradou a Dürrenmatt, que o julgou uma concessão às fórmulas convencionais detetivescas. Foi para corrigir esse pecadilho comercial que nasceu A Promessa, cujo roteiro é quase o mesmo do filme, mas respeitando as verdadeiras convicções literárias do autor. O resultado é leitura cativante de alta qualidade.

Praticante de uma vertente mais filosófica e existencial do romance policial, Dürrenmatt faz-se personagem de A Promessa, e já nas páginas iniciais vamos achá-lo em uma situação “erudita”: ministrando uma conferência sobre o gênero policial para quase nenhum público. É na saída dessa fracassada palestra que Dürrenmatt encontra o personagem que assumirá a tarefa de conduzir toda a trama: incomodado com a visão muito lógica e convencional das histórias policiais, o doutor H. assume a palavra e revela os meandros da investigação do caso de assassinato de uma criança, nove anos antes.

As imprecações do velho ex-comandante de polícia contra a literatura policial são a forma direta de Dürrenmatt apresentar sua subversão das convenções literárias do gênero: “Vocês, da escrita (…), não tentam lidar com uma realidade que vive escapando entre os dedos, mas montam um mundo que é administrável”. Somente nesse mundo artificial e falso os detetives são geniais e sempre desvendam os casos como quem demonstra um teorema matemático. A realidade que vai escapando pelos dedos assemelha-­se mais ao “desgraçado triste e bêbado” atendente do posto de gasolina à beira da estrada em que H. parara para abastecer. Seu nome era Matthäi, e o doutor prontamente revela que aquele “era um de meus melhores homens”. Tenente sênior, jurista com doutorado, Matthäi estava com sua promoção acertada quando, em seu último dia de trabalho na estação, recebeu o telefonema que faria com que a realidade lhe escapasse pelos dedos.

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A PROMESSA/A PANE, de Friedrich Dürrenmatt (tradução de Petê Rissatti e Marcelo Rondinelli; Estação Liberdade; 224 páginas; 45 reais)   (//Divulgação)

Foi assim que se viu lançado à investigação do violento assassinato de uma criança em um pequeno vilarejo da região. Aos pais da menina, Matthäi faz a promessa de descobrir seu assassino. Como essa promessa o levaria, nove anos depois, a tornar-se não mais que um miserável bêbado em um posto de gasolina? Para o doutor H., o gênio de Matthäi como investigador o arruinou. Enquanto a investigação sobre o assassinato se encaminha para um desfecho burocrático — uma confissão mal arranjada após vinte horas de interrogatório —, a intuição de Matthäi o leva a percorrer um caminho totalmente distinto. Para que ele cumpra a promessa aos pais da menina morta, os elementos da realidade bem ordenada que compunham a vida do tenente sênior vão, um a um, se esvaindo — promoção, prestígio, reputação — até que sua própria sanidade é posta em xeque. Não é por acaso que a novela trazia como subtítulo, em sua primeira versão, Réquiem para um Romance Policial: não é apenas o princípio de um enredo linear, ou a lógica na solução do crime, que Dürrenmatt subverte. Acompanhamos a dissolução de um personagem tomado pela obsessão do desfecho de sua investigação, em vez de qualquer solução de fato. Ao contrário de outros grandes no romance policial — de Raymond Chandler a Georges Simenon —, Dürrenmatt aposta menos no noir e em outros elementos literários, e mais no tempero psicológico e existencial.

Se estivéssemos percorrendo a estrada da tradicional história de detetive, poderíamos aguardar o desfecho que faria justiça ao gênio do personagem. Com Dürrenmatt, no entanto, a estrada é mais sinuosa, levando o leitor aos vislumbres de um serial killer e de um novo crime iminente. Nas curvas dessa estrada, o frentista miserável é parte do mistério humano — do qual os mistérios policiais são apenas um caso. Um mistério que marca mesmo a mais comum das existências.

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Comum, de fato, era a vida de Alfredo Traps, e comum foi também o pequeno acidente com seu carro novo em A Pane, engenhosa história escrita poucos anos antes de A Promessa. Levado pelas circunstâncias a pernoitar na casa de um juiz aposentado no interior da Suíça, Traps logo vê dissipar-se seus temores de uma noite aborrecida com bacharéis e eruditos que compareceriam ao jantar de seu anfitrião. Além de haver farta e sofisticada comida no banquete, o caixeiro-viajante sente-se cada vez mais à vontade entre os convivas, que lhe propõem a encenação de um jogo: um júri, com direito até mesmo a carrasco executor da pena.

Armado o jogo do tribunal — ao convidado cabe sempre o papel de réu —, Traps terá sua vida examinada em um curioso processo de revelação e autoconhecimento. Quanto mais confessa aos presentes pecadilhos e defeitos de sua existência, mais o personagem se sente verdadeiro e vivo. Narrativa de atmosfera, A Pane pode não eletrizar o leitor como A Promessa. Mas, ainda que não seja guiado pela estrutura de desvendamento de um crime, o leitor é envolvido gradativamente pelos erros, ambições, mesquinharias e trapaças do curioso personagem. A certo ponto, adivinha que algo grave ocorrerá em meio ao passatempo aparentemente banal.

Acima do jogo de Traps com os respeitáveis senhores está o jogo do autor. Já na abertura de A Pane, Dürrenmatt imaginava a condição do escritor “decidido e obstinado, certo de que a razão de escrever está nele mesmo” — e não no público. Bom que tenha sido assim. Decidido, obstinado e escrevendo com a razão em si mesmo, o autor suíço produz literatura melhor que a de colegas de ofício que muito bajulam e pouco instigam o leitor.

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Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629

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