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A vida eterna dos deuses

Compilador de uma bela coletânea de mitos gregos, Stephen Fry fala a VEJA sobre as lições atuais dessas histórias — e relembra encontro com Jair Bolsonaro

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 26 out 2018, 07h00 - Publicado em 26 out 2018, 07h00
MYTHOS – de Stephen Fry (tradução de Helena Londres; Planeta; 368 páginas; 59,90 reais) (//Divulgação)

Tempos atrás, o inglês Stephen Fry foi tocado pelas musas enquanto contava para amigos histórias sobre os deuses gregos. “Fiquei surpreso ao descobrir que eles desconheciam a maioria delas”, disse Fry a VEJA. Ao constatar a lacuna de novas obras sobre o tema, ele valeu-se de seus dotes narrativos para resgatar a mitologia grega com visada contemporânea. Destinado a instruir a geração das redes sociais, Mythos, livro de Fry recém-­lançado no Brasil (um segundo volume, Heroes, está saindo na Inglaterra), também vai deliciar o leitor familiarizado com nomes como Afrodite, Ares e Artêmis. “Temos muito a aprender com os gregos”, diz Fry na entrevista que ocupa as páginas seguintes.

Ator, comediante e romancista de 61 anos, Fry é um entusiasta versado desde criança nos detalhes mais surpreendentes das aventuras de deuses, heróis e monstros. Narrador culto e elegante, adiciona cores literárias sem corromper as fontes consagradas de um apanhado de episódios que se iniciam na tumultuada criação do Cosmos, passam pela feroz Titanomaquia — guerra mitológica em que os deuses derrotaram seus antepassados titãs (entre eles, o cruel Cronos, que devorava a própria prole) — e culminam na vida do rei Midas, que transformava tudo o que tocava em ouro.

Com a ironia elegante de um posh (como os ingleses chamam os representantes de suas classes altas e bem-­educadas), Fry espana a pátina de solenidade bolorenta que poderia afastar o leitor moderno dos mitos gregos. “Hera sabia que Zeus tinha tendência para a galinhagem e estava determinada a não o deixar à solta”, escreve sobre o espírito cafajeste do maior dos deuses gregos e sobre o ciúme de sua patroa. Ao falar da euforia no Olimpo com o casório de Cadmo e Harmonia, compara o par de divindades a um casal-celebridade: “Suspeito que a imprensa e a mídia social não resistiriam a apelidá-los de ‘Cadmonia’ ”.

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As correspondências com o século XXI fazem de Mythos bem mais que uma versão para adolescentes das histórias clássicas. No momento em que a inteligência artificial bate à porta, lembra Fry, a humanidade está diante do mesmo dilema de Prometeu, que criou o homem com argila e, inadvertidamente, lhe concedeu o dom do fogo. Uma nova tradução da tragédia Édipo Tirano, de Sófocles (veja resenha), junta-se ao livro de Fry como guia para examinar nossos tempos confusos à luz dos mitos gregos.

Fry, que é gay e ativista, esteve no Brasil tempos atrás para gravar um programa da TV inglesa sobre violência homofóbica. Entrevistou o deputado Jair Bolsonaro, a quem mais tarde descreveria como a pessoa “mais desagradável” que conheceu (seus vídeos viralizaram na campanha eleitoral). Ele vê a ascensão de Bolsonaro e de políticos como o americano Donald Trump como parte de um mesmo processo mundial — sobre o qual, é evidente, os mitos têm muito a dizer.

ATAQUE POSH – Stephen Fry: fascínio pelos deuses difíceis (//Divulgação)

Por que os mitos gregos mantêm seu apelo milhares de anos após terem sido criados? São histórias que falam coisas profundas sobre quem somos. Os gregos foram provavelmente a primeira civilização a acreditar na noção de progresso. Antes, havia os egípcios, mas sua cultura permaneceu imutável por mais de 3 000 anos. Não tinham ambição de progredir. Já os gregos mostravam grande preocupação com a evolução da sociedade, ainda que soubessem quanto o homem pode se perder nessa trilha.

O que fez com que as narrativas dos gregos antigos, e não as de outros povos, prevalecessem? Os gregos foram os primeiros a olhar para dentro de si mesmos, na tentativa de compreender por que os seres humanos eram tão diferentes dos outros animais. Eles entenderam que o homem tinha uma vida interior, e que essa é a marca mais formidável da espécie. Um sapo não acorda de manhã e pensa: “Nossa, eu me comportei como um sapo terrível ontem à noite”. Nós questionamos a nós mesmos e tudo à nossa volta.

Quais ensinamentos se podem extrair de suas histórias? Tome-se o mito de Prometeu. Em questão de décadas, o homem terá a chance concreta de criar uma forma de inteligência artificial com as próprias mãos, o que nos deixará na mesma posição de Prometeu, que criou o ser humano a pedido dos deuses e caiu em desgraça ao presentear suas criações com o fogo. Os deuses sabiam que, com o poder do fogo, o homem viraria as costas para seus criadores. Nós passaremos pelo mesmo dilema: devemos dotar nossas invenções tecnológicas de consciência, ainda que sob o risco de que elas se voltem contra nós?

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ENCANTO – Zeus, como águia, rapta Ganimedes, em tela de Sueur: romance gay (Roger-Viollet/AFP)

Há outros mitos tão atuais? Muitos, mas não posso deixar de citar a história de Pandora, que é um tanto apropriada ao nosso período histórico. Toda vez que acreditamos ter produzido algo tão perfeito e belo quanto essa que foi a primeira mulher, a quem os deuses conferiram todos os dons, nós nos esquecemos de que, junto com a ilusão de virtude, Pandora carrega em seu pote (ou caixa, como erroneamente se difundiu) todos os males do mundo, das doenças aos horrores da guerra. Penso em Pandora e me vem à cabeça a euforia que as pessoas — inclusive eu — sentiram com o surgimento da internet, nos anos 90. Pensava-se que salvaria o mundo: as fronteiras e as distâncias entre nós se dissolveriam e tudo seria fantástico. Hoje, todos conhecemos o lado sombrio da internet, que ajuda a semear a discórdia, como no mito de Pandora.

Quais são seus personagens favoritos na mitologia grega? Meu deus favorito é Hermes. Ele é o deus dos mentirosos e, por isso mesmo, também o pai de todos os contadores de histórias. Eu sou um contador de histórias, então não teria como não me identificar com Hermes e me inspirar nele. Quando criança, ficava fascinado também pelos muitos deuses de caráter difícil, como Ares e Poseidon. Ser irascível e perigosamente caprichoso, aliás, está no DNA dos deuses gregos. Muitas de suas divindades masculinas são fortões destrutivos, manipuladores e egoístas.

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Os vários lances de atração homos­sexual nos mitos gregos têm um interesse especial para um ativista gay? É notório que os gregos eram bastante liberais em relação ao amor entre pessoas do mesmo sexo. Isso, claro, se estendia a seus deuses. Mesmo Zeus — o mais machão e mulherengo de todos — não resistiu aos encantos de um rapaz belíssimo, Ganimedes. Não quero dizer que os gregos tivessem uma sociedade moderna. Havia escravidão e opressão das mulheres. Mas, na cultura grega, a perfeição, a beleza e o desejo não se esgotavam em um único padrão. Ao contrário do que ocorre no catolicismo, em que as pessoas já nascem com culpa por serem quem são, os gregos não tinham problemas em ser eles mesmos. Por que deveríamos pedir desculpas por nossa existência, afinal?

FÚRIA - Saturno (Cronos, para os gregos) devora seu filho, por Goya: irascível (Cortesia/Museo Nacional Del Prado/.)

O senhor descreveu o deputado Jair Bolsonaro, a quem entrevistou no Brasil, como a pessoa “mais desagradável” que conheceu. Surpreende-o que ele seja o favorito nas eleições? É muito triste. É óbvio que não me compete, como estrangeiro, dizer em quem os brasileiros deveriam votar. Tenho consciência de que o PT foi uma grande decepção e as pessoas acham que é hora de punir Lula e seu partido. Mas o outro lado da moeda — a tendência mundial de ascensão de líderes raivosos, autoritários e isolacionistas, como Donald Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro — não é menos terrível. Infelizmente, as pessoas não parecem ver um caminho do meio, do bom-senso, e isso favorece figuras que defendem ideias maníacas e fantasiosas. Pena. O Brasil é muito melhor do que Bolsonaro.

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No passado, Bolsonaro atacou minorias como os homossexuais, e hoje diz que vai governar para todos. Como alguém que denunciou a violência contra os gays brasileiros, qual sua expectativa sobre um eventual governo dele? Eu vejo um futuro aterrorizante. Ele pode se dizer um pai de família cristão e falar que as pessoas não terão o que temer, mas a verdade é que enviou sinais ao longo da vida de que não é aceitável ser gay, de que não é o.k. que se tenha opiniões diferentes das dele ou que as mulheres controlem o próprio corpo. Ele fracassará, pois pessoas com suas ideias sempre fracassam na história — não sem deixar um rastro de dor, loucura e destruição. A tragédia é que faltam no mundo autoridades capazes de tirar as ideias infantilizadas da pauta e falar como adultos sobre nossas democracias. Dá vontade de entrar numa máquina do tempo e pedir socorro aos grandes líderes que o mundo já teve, como (o primeiro-ministro inglês) Winston Churchill.

Os mitos gregos teriam algo a ensinar sobre a situação? Suas histórias mostram que a ponderação é a saída sensata em meio à turbulência. Todos nós carregamos as virtudes e imperfeições dos deuses. Quando optamos por soluções extremas, rompemos com a harmonia do universo, com todas as consequências disso. Os perigos de ir muito longe na tentativa de controlar o destino, de voar perto demais do Sol, são um alerta sobre os impulsos destrutivos da vontade.

Publicado em VEJA de 31 de outubro de 2018, edição nº 2606

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