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Uma flor no lamaçal

Por Gustavo Ioschpe
29 Maio 2015, 22h12

Arealidade é complexa. Pense no simples ato de ler esta página e na quantidade de áreas e saberes que foram necessários para possibilitar o nosso diálogo. Ele depende de muitos anos da minha formação; do computador em que escrevo e suas centenas de patentes; de toda a tecnologia de plantio e colheita de árvores, do processamento dessas árvores até que se tornem celulose e depois papel; do conhecimento de editores, diagramadores, revisores, fotógrafos mais a equipe que opera o maquinário da gráfica. Ainda há a equipe de logística, de transporte, financeira etc. Tudo isso está embutido no seu simples ato de folhear esta página (para quem a lê on-line, a quantidade de inovações e saberes envolvidos provavelmente é ainda maior).

A escola precisa preparar as pessoas para navegarem a complexidade desse mundo. Que está cada vez mais complicado, mas que já era complexo e multifacetado desde que o mundo é mundo. Seria muito difícil abarcar toda essa complexidade e interdependências em um currículo escolar. O professor teria de dominar todas essas áreas, o que é virtualmente impossível, e também controlar o ambiente para que as crianças só fossem expostas ao nível de complicação que pudessem deglutir. O que o sistema escolar fez, então, foi replicar o reducionismo da ciência: fracionar a complexidade em seus múltiplos elementos e ensiná-­los de forma separada. Ao fazê-lo, garantiu que os pupilos pudessem ter mestres que dominam profundamente o assunto ensinado e que o nível de dificuldade da matéria fosse controlado e ajustado à capacidade de compreensão dos alunos. É um modelo brilhante, que vem produzindo grandes resultados há milênios.

Como em toda atividade de especialização e divisão do trabalho, porém, há um downside: perde-se a visão global. Alguém já disse que um especialista é aquele que sabe cada vez mais sobre cada vez menos. O professor de história precisa mergulhar não apenas nessa disciplina, mas também, provavelmente, nos conteúdos de história das séries em que leciona. A mesma coisa acontece com seus colegas de todas as outras disciplinas. Esse foco no conhecimento gerou grandes avanços, mas acarretou um importante retrocesso: tudo o que está fora do currículo é ignorado, parece desimportante.

Desde a década de 90, pelo menos, com o trabalho do psicólogo Daniel Goleman, tornou-se amplamente difundido o achado de que os fatores não cognitivos são tão ou mais importantes para o sucesso na vida adulta – não apenas profissional, mas também pessoal – que o QI ou a cultura geral. A popularização dessa ideia, chamada de inteligência emocional, também penetrou a área da educação, especialmente em países desenvolvidos, onde muitas escolas criaram programas para ensinar os pequenos a ser pacientes, perseverantes, abertos, respeitosos etc. O movimento é compreensível. Se algo é muito importante na idade adulta, faz mais sentido ensiná-lo ainda na infância, pois depois pode ser difícil ou tarde demais. E também é lógico que a dianteira tenha sido tomada por países desenvolvidos. Primeiro, porque eles já resolveram o bê-á-bá, de forma que têm liberdade para se preocupar com problemas mais avançados. Segundo, porque nosso mundo é regido por uma competição de talentos – e, se houver uma dimensão do talento humano que está sendo cultivada em um lugar mas não em outro, quem ficar para trás terá uma desvantagem estratégica importante. E, terceiro, porque até nos países em que o sistema funciona muito bem há crianças que não aprendem, que abandonam a escola e se rendem ao crime ou às drogas. Um sinal de que mesmo um sistema azeitado pode estar deixando alguma coisa de lado.

Nos últimos anos, começou a emergir uma literatura coesa e robusta, da qual o livro Uma Questão de Caráter (péssima tradução de How Children Succeed), de Paul Tough, oferece um competente resumo, da importância de qualidades não cognitivas como garra e autocontrole para o sucesso de crianças (já mencionei aqui, em outro artigo, o experimento clássico de Walter Mischel com os marshmallows; para quem não conhece, vale a pena dar um Google ou ver twitter.com/gioschpe).

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Recentemente, uma ONG deu um passo além: entendeu que a promessa desse novo olhar sobre o desenvolvimento humano não era apenas de incorporar os temas não acadêmicos à educação, mas, de forma mais ambiciosa, trazer todos os conhecimentos da ciência para a sala de aula. Sim, pois paradoxalmente a instituição que forma os futuros cientistas não tem se beneficiado de quase nada do que eles vêm descobrindo ao longo das últimas décadas. Desde a década de 60 do século passado, economistas já buscam quantificar o processo educacional. Mais recentemente tivemos neurocientistas descobrindo muito sobre como o cérebro aprende e psicólogos notando os impactos de questões de higidez mental sobre a capacidade de aprendizado de crianças e jovens. Mas nada disso entra no radar da esmagadora maioria dos professores do mundo todo, que não costumam aprender sobre esses conhecimentos em suas formações. Passam a vida tentando mudar a cabeça de seus alunos mas não têm a menor ideia de como o cérebro funciona. Baseiam sua prática em pensadores teóricos do século XIX. E eis o mais surpreendente: essa ONG não é da Finlândia, da Coreia nem de qualquer outra potência educacional, mas do… Brasil! Trata-se do Instituto Ayrton Senna.

O IAS acaba de lançar uma iniciativa chamada eduLab21, em parceria com o Insper e a Universidade de Ghent, na Bélgica. É um laboratório destinado a trazer o conhecimento em educação para o século XXI e o conhecimento do século XXI para a área de educação. O polo belga será o responsável pela geração de novos estudos, inicialmente usando inputs das áreas de psicologia, neurociência e economia. O polo brasileiro, comandado por Ricardo Paes de Barros, o melhor economista brasileiro de sua geração, terá como responsabilidades a organização do conhecimento gerado (em todo o mundo) e sua implantação e teste em sala de aula. E aqui a coisa fica mais interessante: como o IAS atende milhões de alunos através de parcerias com secretarias municipais e estaduais de Educação em quase todo o país, o que há de mais avançado nessa pesquisa poderá ser quase que imediatamente testado em campo, em centenas de escolas. Poder realizar experimentos em tantos e tão grandes grupos de alunos é o sonho de todo pesquisador; beneficiar-se do conhecimento de ponta em primeira mão é o sonho de todo bom gestor público. O IAS já vinha tomando um papel de liderança internacional na pesquisa do impacto dos aspectos socioemocionais sobre a aprendizagem por meio de uma parceria com a OCDE. Com o eduLab21, não seria surpreendente se virasse a instituição de referência mundial no assunto. Tudo isso sem custar um centavo ao Erário. É quase inacreditável, mas do lamaçal que se tornou a educação brasileira brota uma flor que há de nos orgulhar.

A morte de Ayrton Senna foi um evento traumático para a maioria dos brasileiros acima de 30 anos, entre os quais me incluo. Foi-se num acidente estúpido nosso compatriota que triunfava no mundo das máquinas, da tecnologia de ponta. Seu falecimento institucionalizou o trabalho pelo bem das crianças brasileiras, que Senna fazia de maneira informal e quase escondido. O choque da sua morte e o amor de tantas pessoas mundo afora ajudaram seu instituto a obter as doações de pessoas e empresas que até hoje o mantêm operando. Que doce ironia que agora sua irmã, Viviane, comande uma instituição que também tem pinta de líder mundial em uma área que está na ponta do conhecimento.

P.S. Full disclosure: este articulista está em conselhos do Insper e do Instituto Ayrton Senna, de forma não remunerada.

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P.P.S. Em twitter.com/gioschpe cito alguns programas de intervenções na área socioemocional com resultados comprovados.

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