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Retorno a vila visitada por Lula em 2005 mostra paralisia da educação

Saga de grupo de crianças de Caruaru observadas ao longo de duas décadas é um contundente alerta da urgência de o Brasil se mexer para oferecer bom ensino

Por Monica Weinberg, de Caruaru
Atualizado em 18 ago 2023, 10h03 - Publicado em 17 ago 2023, 19h30

Sempre que um helicóptero rompe os céus de Vila Canaã, distrito pobre de Caruaru, em pleno agreste pernambucano, a criançada se alvoroça. Bate vento, faz barulho e leva o pensamento longe, para cantos do planeta onde nunca pisaram. Em 11 de fevereiro de 2005, o roteiro trouxe algo de inusitado: a bordo da aeronave, que fascinou o grupo que jogava bola no campinho ao lado, estava Lula, então em seu primeiro mandato. Não sabendo ainda de quem se tratava, mas entendendo ser figura ilustre, meninos e meninas de pés descalços e olhos vidrados se puseram atrás de uma cerca e ali entabularam conversa com o presidente, que perguntou: “Quem aí vai para a escola?”. Todos disseram que iam, mas, naquele dia, a pelada pareceu mais atraente. Receberam da comitiva sanduíches de queijo e bolo de laranja protegidos por papel laminado de um brilho que alguns jamais apagariam da memória. Lula então despediu-se e embarcou em carro oficial, deixando em Taciana Simião, de 6 anos, a sensação de que, ela também, um dia teria a experiência de olhar o mundo lá de cima. “Vou voar bem alto”, pensou a garota, que aparece no meio da foto que eterniza o momento.

ATRÁS DA CERCA - A turma que correu para ver Lula em 2005 e agora adultos: eles continuam atados ao ciclo da pobreza
ATRÁS DA CERCA - A turma que correu para ver Lula em 2005 e agora adultos: eles continuam atados ao ciclo da pobreza (Ricardo Stuckert/PR)

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Taciana, a quem chamam de Nega, não alçou nenhum voo desde então, assim como as demais sete sorridentes crianças na fotografia, hoje adultos na faixa dos 20, 30 anos, todos com os pés fincados no ciclo da pobreza. Um atrás do outro, eles foram abandonando a sala de aula para trabalhar, a maioria na indústria têxtil, a engrenagem da economia local, onde permanecem. Sua trajetória de imobilidade na pirâmide social é o retrato de um país que não conseguiu nestas quase duas décadas tornar a educação um projeto de Estado, que não mude de direção ao sabor dos ventos da política, nem tampouco se livrou de ideologias que só servem para turvar a visão. A meninada agora crescida de Caruaru é também um exemplo tristemente contundente de como as portas do bom ensino seguiram fechadas justamente a quem mais precisa dele para desatar o nó das necessidades básicas e subir na vida.

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É verdade que, nesses anos, o acesso à escola avançou de forma relevante no Brasil, um processo desencadeado ao longo da década de 1990, na gestão Fernando Henrique Cardoso, e impulsionado por Lula, que esticou o ingresso à pré-escola e ao ensino médio. O que continua a emperrar de forma decisiva o progresso individual, e o crescimento do país como um todo, é a maré de notas vermelhas que a educação brasileira acumula a cada nova avaliação, ainda que se verifique uma bem-vinda melhora nas primeiras séries.

EM CAMPO - Buarque volta à cena: “É preciso virar rapidamente a página”, diz
EM CAMPO - Buarque volta à cena: “É preciso virar rapidamente a página”, diz (./Divulgação)

A mais abrangente aferição internacional do nível de aprendizado, feita pela OCDE (o clube dos países desenvolvidos), mostra uma perturbadora paralisia nas curvas desde a época em que a turma de Canaã foi clicada. Aos 15 anos, mais da metade dos brasileiros não sabe interpretar textos elementares nem resolver operações simples envolvendo números inteiros, o que situa o país no pelotão de trás nos rankings de leitura e matemática do Pisa, nos quais nações de renda inferior se saem melhor, como Peru, Colômbia e Costa Rica (veja o quadro abaixo). “Enquanto vários deles caminharam rumo à excelência, atendendo às crescentes exigências do século XXI, o Brasil anda a passos lentos”, observa o físico Andreas Schleicher, que pilota as avaliações educacionais na OCDE, fazendo refletir sobre o futuro próximo: o que será que ele reserva aos filhos dessa turma de Caruaru?

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arte educação

Senador pelo PT em 2005, dois anos depois de ocupar o cargo de ministro da Educação de Lula, Cristovam Buarque, colunista de VEJA, bateu os olhos na imagem da garotada do agreste pernambucano no jornal e foi a campo conversar com seus pais. Percebeu que eles não enxergavam na escola um motor para a ascensão de suas vastas proles. Preocupavam-se mais com a merenda — macarrão com sardinha, Nescau com bolacha — e com a manutenção do Bolsa Família, que cobra a frequência nas aulas. Enviou a Lula uma carta intitulada “Estas Crianças Têm Nomes — Como Dar-lhes um Futuro?” e anotou ali uma observação ao presidente: “Você não é o culpado disso, mas daqui a dez anos será”. Passada uma década, em 2015, Buarque regressou às mesmas ruas de terra batida, e encontrou Taciana, que fora mãe aos 15 anos, e os outros (quatro deles seus irmãos) fora do colégio e vivendo de costurar calças jeans distribuídas do polo de Caruaru para todo o Brasil. Juntavam as letras, mas não extraíam sentido das palavras. “Não tínhamos incentivo para estudar. No meio da pobreza, é duro encarar os livros como um caminho”, reconhece o auxiliar de cozinha Janailson Simião, 31 anos, irmão de Taciana, que achou forças mais tarde para concluir o ensino fundamental e conquistar o diploma, muito bem emoldurado e exibido na parede de casa.

Para finalizar sua pesquisa, que já resultou no livro Retrato de uma Década Perdida, Buarque acaba de retornar à Vila Canaã, desta vez acompanhado de VEJA, para averiguar como o grupo chegou à fase adulta. Os oito que lá atrás, em 2005, traziam no semblante um misto de admiração e esperança falaram à reportagem. Cinco deles nunca haviam saído da vizinhança, um estava de volta após uma malsucedida tentativa de se estabelecer em Santo André (SP), outro se preparava para trabalhar com motosserras em Minas Gerais e um último arranjou emprego como garçom no belo cartão-postal praiano de Porto de Galinhas. Ele é Rubison David Leite, o Rubinho, 25 anos, que deixou a escola aos 12, nunca leu um livro, mas relata ter assimilado conhecimento na aridez do cotidiano.

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ESPERANÇA - O pequeno Ângelo (de camisa azul) não tira os olhos dos aviões: “Ainda vou voar bem alto”, promete
ESPERANÇA - O pequeno Ângelo (de camisa azul) não tira os olhos dos aviões: “Ainda vou voar bem alto”, promete (Leo Caldas/.)

Aos 19, Rubinho participou com um irmão mais novo de uma tentativa de assalto a mão armada e foi condenado a oito anos, dez meses e vinte dias de prisão — pena que conta nos dedos e, de uns meses para cá, cumpre em regime semiaberto. Arrepende-se, mas não guarda vergonha. Ao filho de 9 anos, diz: “Se estudar, você vai ter tudo o que quiser”. A determinação que o jovem demonstra é espantosa, mas não encerra a questão, como sinaliza um rol de pesquisas: a trilha para voar alto, como sonham em Canaã, não depende apenas de estudo — é a qualidade do que vai à lousa (ou às telas do computador) que serve de motor à ascensão. “Avançamos na matrícula, mas isso não é sinônimo de frequência, que por sua vez não garante a permanência nem o aprendizado para o mundo contemporâneo”, enfatiza Cristovam Buarque.

O sistema educacional brasileiro funciona como um funil, que a cada ano vai se estreitando conforme os alunos abandonam as salas de aula no meio da jornada, a imensa maioria antes de escalar ao ensino superior. Apenas 25% dos jovens se matriculam na universidade (a metade da média da OCDE), dado preocupante diante da realidade de um mercado de trabalho cada vez mais exigente e norteado pelas tão requeridas competências do século XXI. Os reflexos no bolso para a minoria que alcança tão almejado patamar são mensuráveis. Quem se gradua na faculdade recebe o triplo do salário daqueles que não completam o ensino médio, e essa diferença vai se alargando. “Como o diploma universitário ainda não é disseminado, conta muito. É uma questão de demanda e oferta”, resume o economista Naercio Menezes, autor de um estudo que reforça a urgência de o país se mexer para se beneficiar de uma vez por todas da roda da educação. Sua pesquisa traz à luz os ganhos à sociedade de investir em ensino de alto nível desde o princípio do percurso escolar: a criminalidade cai, enquanto a empregabilidade, a inovação e a produtividade disparam.

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PARA POUCOS - Dia de Enem: apenas um de cada quatro brasileiros chega à universidade, um motor para a ascensão
PARA POUCOS - Dia de Enem: apenas um de cada quatro brasileiros chega à universidade, um motor para a ascensão (Luis Fortes/.)

A visita à escola municipal Capitão Rufino, em Vila Canaã, faz pensar sobre o fosso que separa as crianças que ali estão dessa janela de oportunidades que se escancara para quem consegue chegar tão longe. O colégio passou por uma boa recauchutada desde aquele longínquo 2005, quando dispunha de uma única lousa, três salas de aula para acomodar quase 300 alunos e um muro inacabado. Hoje, há biblioteca, laboratório de informática, doze salas e até ar-condicionado para aplacar temperaturas que ultrapassam os 30 graus no chamado inverno. O problema reside mesmo no que as crianças absorvem. “Apenas 32% das que já deveriam estar alfabetizadas sabem ler e compreender textos simples”, calculou a diretora Rosilene Pereira, lembrando que, em junho, quando Caruaru ferve com os festejos de São João, a frequência despenca à metade, já que a garotada vai ajudar os pais na produção de jeans.

Bem mais adiante, o cenário que se avista no fim do ensino médio também não permite desligar o sinal amarelo — nessa etapa, 63% dos estudantes brasileiros não apresentam nível adequado em português e inacreditáveis 90% patinam em matemática, de acordo com levantamento do MEC. “Não basta mais concluir os estudos para crescer. É preciso dar mostras concretas do que se aprendeu”, ressalta Priscila Cruz, presidente da ONG Todos pela Educação.

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ATRASO - Escola Capitão Rufino, em Vila Canaã: distante da excelência
ATRASO - Escola Capitão Rufino, em Vila Canaã: distante da excelência (Leo Caldas/.)

Historicamente, os países que ocupam o topo dos rankings da educação, como Singapura e Finlândia, não permitiram que o ensino se enredasse nos modismos nem fosse pensado dentro dos limites de um mandato. Ao contrário, eles se mantiveram fiéis no curso de décadas ao que é cientificamente comprovado, lição na qual o Brasil até hoje tropeça. A trilha para um nível elevado em sala de aula, como já é sabido, envolve professores bem formados e preparados para transmitir o conhecimento sem deixar que as deficiências dos alunos se cristalizem. Com uma cartilha obstinada, a Coreia do Sul, que nos anos 1960, ainda sob as fissuras de uma guerra civil, registrava a metade da renda per capita brasileira, deu um salto na qualidade e, em quarenta anos, despontou entre os Tigres Asiáticos de garras bem afiadas. “Nações que foram capazes de proporcionar bom ensino a muita gente ao mesmo tempo melhoraram rapidamente o padrão de sua força de trabalho, tornando-a capaz de gerar riquezas ao país”, afirma em seus estudos Eric Hanushek, professor da Universidade Stanford, nos Estados Unidos.

EXEMPLO - Finlândia: educação ali virou um projeto de Estado, não de governos
EXEMPLO - Finlândia: educação ali virou um projeto de Estado, não de governos (Saunalahti school/.)

Aos 9 anos, Ângelo, filho de Taciana, a menina que encara o observador na foto de 2005, vai à escola, assim como os primos — uns sessenta, nas contas da avó, Maria Ivonete da Silva. Ela teve dezessete crianças, das quais duas morreram e apenas a incansável caçula não interrompeu os estudos. As chances de as novas gerações não abandonarem os livros é hoje substancialmente maior, mas, imerso em um cenário de alta escassez, o pequeno Ângelo, fascinado por um game de corrida que joga em uma velha TV, tem dúvida sobre se a universidade é coisa para ele. “Vamos ver se dá para mim”, fala o garoto, cujo sustento provém, como o dos outros, de uma soma do Bolsa Família com o que os adultos juntam costurando roupa. “A situação melhorou, sim, só que a gente segue atrás da cerca”, lembra Rosália Rodrigues, a mulher de Janailson, aquele que ostenta, com todo o mérito, o diploma escolar na parede. De repente, todos param para ouvir o som de um jatinho cruzando os céus de Caruaru, e Ângelo expressa, sem saber, o mesmo desejo da mãe quase duas décadas atrás. “Um dia, quero estar lá no alto.” O Brasil torce por ele.

Com reportagem de Ricardo Ferraz

Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855

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