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O dilema da criação de filhos no Brasil: a ética compensa?

Pais temem ensinar virtudes às crianças e torná-las presas fáceis em um país onde o dever e a verdade parecem vencidos pela mania de levar vantagem

Por Gabriela Loureiro
6 out 2013, 08h31

A dentista Márcia Costa abomina infrações às leis de trânsito. Em especial, a prática adotada por muitos pais de parar o carro em fila dupla, interrompendo o fluxo de veículos, para deixar os filhos na porta da escola. Ela prefere estacionar seu carro mais longe e fazer os adolescentes caminharem até lá. Não satisfeita, reprova publicamente os motoristas que alimentam a irregularidade. Os filhos protestam: “Que mico!”, diz Beatriz, de 15 anos. “Mãe, assim é você quem acaba sendo a chata da história”, afirma Lucca, de 12. A guerra à fila dupla envolveu até o marido de Márcia, Marcelo, que certo dia colocou a convicção da mulher à prova: “Você quer estar certa ou quer ser feliz?” É um velho dilema. Filósofos gregos já se faziam a pergunta há mais de vinte séculos: uns defendiam que fazer o que é correto, o que deve ser feito, é o caminho para a felicidade; outros argumentavam que tal conciliação é impossível.

Ética e felicidade na Grécia Antiga​​

Pródico de Ceos (século V a.C.), um sofista, acreditava que ética e felicidade eram excludentes. Ele citava o exemplo da escolha de Hércules. Segundo a mitologia, o herói se deparara com duas deusas, a felicidade e a virtude, que o convidavam a viver duas vias distintas. Hércules optava pela virtude em detrimento dos prazeres passageiros. Já Aristóteles (século IV a.C.) pensava que ética e felicidade eram complementares: a primeira como o meio, a outra, como fim

O dilema vive no Brasil hoje. E se acirrou há poucas semanas com a publicação do artigo do economista Gustavo Ioschpe, colunista de VEJA, intitulado “Devo educar meus filhos para serem éticos?” Ioschpe revelou a apreensão de criar filhos em uma nação às voltas com problemas éticos de estaturas variadas – da ausência de pontualidade para compromissos à ausência de honestidade para governar. A certa altura, ele apresentou assim seu dilema: “Será que o melhor que poderia fazer para preparar meus filhos para viver no Brasil seria não aprisioná-los na cela da consciência, do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a integridade?” Foi a senha para que milhares de leitores se manifestassem, compartilhando apreensão idêntica.

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Mais de 30.000 pessoas recomendaram o texto, reproduzido em VEJA.com, utilizando recurso do Facebook; centenas deixaram comentários ao artigo e espalharam as ideias contidas nele pela internet. Muitos aproveitaram a ocasião para contar suas histórias, seus dilemas. É o caso de Márcia Costa e dos demais pais ouvidos nesta reportagem. “Temos que criar nossos filhos para serem do bem ou para se darem bem? A preocupação é o quão inocente nossos filhos vão ser se forem educados para serem do bem”, diz a tradutora Samira Regina Favaro Gris. A médica Denise Zeoti acrescenta: “A ideia de passar valores para minha filha e torná-la uma presa fácil me assusta. Quero que ela seja uma pessoa ética, correta, mas não quero que ela seja passada para trás.” Continue a ler a reportagem

Do ponto de vista filosófico, ética é um conjunto de valores e princípios que define os limites de ação de cada ser humano. “Esse conjunto nos orienta em três questões fundamentais, intrinsicamente ligadas à nossa liberdade individual: Quero? Posso? Devo? Minha resposta depende dos princípios éticos que adoto”, diz o filósofo Mario Sergio Cortella. É uma questão simples de compreender quando aplicada à prática. De maneira geral, queremos muitas coisas: em alguns casos, podemos até obtê-las (ou realizá-las), mas, em outros, não devemos alcançá-las. Pode ser o caso de parar o carro em fila dupla na porta da escola dos filhos; pode ser o caso de desviar dinheiro dos cofres públicos. Pessoas eticamente saudáveis, prossegue a filosofia, são aquelas que podem, mas não fazem o que é errado.

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Mario Sergio Cortella
Mario Sergio Cortella (VEJA)

Quando se trata de ética, portanto, há sempre um choque entre princípios e ações individuais e coletivos. Seria mais correto, aliás, falar em éticas – no plural. Cortella tem um inusitado exemplo para explicar como elas se chocam, e como, no convívio social, a ética se impõe aos interesses individuais. É a análise do caso de uma casca de banana atirada ao chão. “Quem a atirou ali propositalmente seguiu a ética tola, egoísta. Quem viu a casca, mas não a retirou, agiu segundo a ética da omissão. Finalmente, quem jogou a casca no lixo seguiu a ética da vida coletiva.”

Criar filhos no Brasil demanda preocupação extra por causa dos tipos de ética que se chocam no ambiente público. Afinal, como convencer os filhos de que é preciso falar sempre a verdade quando um deputado federal preso por desvio de dinheiro público é absolvido por seu pares, que asseguram a ele o mandato de representante do povo? “Uma sociedade em que os poderosos não são presos, em que nem todos são iguais perante a lei, vive uma contradição ética. Em público você quer parecer igualitário, mas por baixo dos panos, para seus parentes, você usa a ética da desigualdade”, diz o antropólogo Roberto Da Matta (leia entrevista abaixo).

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A ética – a da igualdade – pode ser o caminho mais longo e árduo para os brasileiros, em geral, e para os pais, em particular, rumo à felicidade. Mas é, segundo filósofo Cortella, certamente o único. “Não é possível ser feliz quando não se tem paz de consciência. Quem age de acordo com a conveniência do momento, prega uma ideia e aplica outra, não terá essa paz. Esse sofre de esquizofrenia ética”, diz. “Agir de acordo com o que consideramos correto é o que traz paz de espírito.” No artigo que levantou a discussão, Gustavo Ioschpe, logo após apresentar seu dilema, concluiu que deixar de transmistir a seus filhos um legado ético era uma decisão insustentável. O norte é mesmo a ética.

Antropólogo Roberto DaMatta
Antropólogo Roberto DaMatta (VEJA)

“O Brasil odeia a igualdade, o mérito, o mercado”

Roberto Da Matta, antropólogo

O cotidiano brasileiro é pautado pela ética? Depende de um fator: de que ética estamos falando. No Brasil, estamos acostumados com uma ética da desigualdade, que faz a gente ter uma enorme dificuldade em aceitar a igualdade.

Trata-se, então, de uma questão cultural? É uma questão cultural que tem a ver com uma cultura política profundamente desigual. Esta tem raízes no regime da escravidão e da monarquia, fundados na desigualdade, e foi transferida para a República, cujo pilar é a igualdade, sem que houvesse a necessária discussão e sem que o conceito de igualdade fosse internalizada nos cidadãos. As questões são sempre discutidas a posteriori, quando acontece alguma coisa alarmante, como um caso de corrupção em que um ministro roubou muito. Aí, paramos para discutir.

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Qual a relação entre igualdade e ética? Temos um ditado revelador no Brasil: os incomodados que se mudem. Assim, se você chegar a um restaurante com suas amigas, falando alto e dando risada, e isso incomodar a mim, eu é que sou obrigado a me retirar. A desigualdade prevalece sobre a igualdade. Dentro da nossa cultura, tudo isso é sintomático: a maneira de furar fila, não esperar a vez do outro, não dar vez para pessoas idosas e assim por diante. Tudo isso precisaria ser discutido para criar uma ética de igualdade.

Em que medida essa ética da desigualdade é responsável, por exemplo, pela corrupção nos governos? Muitas vezes, achamos que uma mudança no estado acarretaria uma mudança automática na sociedade. É justamente o contrário. Quem assume os cargos públicos são nossos iguais, companheiros, parentes. São como nós as pessoas que reproduzem no estado esse padrão duplo de usar de vez em quando uma ética igualitária e em outros momentos uma ética baseada em relações, nos contatos. O Brasil não gosta de ser igual, odeia a igualdade, o mérito, o mercado. Prova disso é que, antigamente, o trabalho era considerado marginal e, por isso, os superiores não trabalhavam. Carregamos uma tradição aristocrática em lugar de uma herança moderna, baseada na ética da modernidade, que vem de uma orientação cosmológica diferente, interessada em melhorar esse mundo.

Essa noção de igualdade deve ser ensinada em casa? Sim, é preciso ser coerente em casa e na rua. Porém, a própria estrutura familiar é muito desigual. Os meninos podem chegar às 6h da manhã de uma festa, enquanto as meninas têm que estar em casa à meia-noite. Irmãos mais velhos ainda têm mais direitos do que os mais jovens. Em resumo, a mudança necessária tem que começar pela família.

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