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Beleza no cerrado

Em uma escola rural do Tocantins, projeto fincado na cultura local e erguido com material da região surpreende pela elegância e ganha prêmio internacional

Por Fernanda Thedim | Fotos Tuca Reinés, de Formoso do Araguaia
Atualizado em 30 nov 2018, 07h00 - Publicado em 30 nov 2018, 07h00

Aos 17 anos, Gilvan Jesus da Silva tem um sonho: estudar medicina. “Vou passar no vestibular e ser cardiologista, você vai ver”, desafia o rapaz, nascido em Formoso do Araguaia, cidadezinha de 18 000 habitantes no interior do Tocantins. Para chegar a ela partindo de Palmas, a capital, são cinco horas de carro em uma estrada tomada por caminhões que transportam soja. Gilvan foi criado em um assentamento rural sem água encanada, energia elétrica nem rede de esgoto, em uma casa de bambu e palha construída pelos próprios pais. Continua em Formoso, mas agora enche o peito para dizer que mora no lugar mais bonito do mundo: é aluno interno da escola da Fazenda Canuanã, cujo alojamento recebeu o prêmio de melhor projeto de arquitetura de 2018 do respeitado Royal Institute of British Architects (Riba), de Londres. “Agora o mundo sabe que a gente existe”, diz ele.

LUZ E SOMBRA - Alojamento da escola de Canuanã ao entardecer: visão iluminada das passarelas (Tuca Reinés/VEJA)

O internato, que atende hoje 840 alunos dos 7 aos 18 anos, fica no fim de uma estradinha a 46 quilômetros do centro de Formoso. O alojamento logo salta aos olhos — uma edificação de madeira diferente de tudo o que se vê ao redor. Troncos altos sustentam a fina cobertura de metal, que mais parece uma folha de papel flutuando no ar. São dois prédios idênticos, um para meninos, o outro para meninas. Blocos de cinco quartos, cada um com capacidade para seis alunos, têm paredes de tijolinhos de barro na parte de baixo e filetes de madeira na de cima, tudo em desenho vazado para facilitar a ventilação e a iluminação. A escola, que existe desde 1973, é um prédio tradicional de alvenaria, a pouco mais de 100 metros dos novos dormitórios, que entraram em uso no ano passado (antes a meninada dormia em galpões precários com capacidade para oitenta leitos).

Cada cômodo, disposto em torno de pátios arborizados, leva o nome de um animal da forma como foi avistado na região e que está representado na porta em uma pintura em palha de buriti trançada pelos índios da aldeia vizinha. Os nomes — Rastro da Sucuri, Rabo do Guaxinim, Urubu de Uma Asa Só, entre outros — são obra dos alunos, que participaram durante dez dias de uma espécie de festival criativo com oficinas de texto, desenhos e encenações, para expor sua realidade à equipe responsável pelo projeto. Não só os nomes dos blocos, mas toda a obra levou em conta o ponto de vista dos estudantes. “Erguemos as paredes com as histórias e os desejos das crianças, para criar um ambiente em que se sentissem realmente em casa”, explica o arquiteto paulista Marcelo Rosenbaum, que dividiu o projeto com o escritório Aleph Zero.

ÁREA VERDE - Pátio interno: todos os quartos de alunos dão para o conjunto de canteiros com plantas e árvores nativas (Tuca Reinés/VEJA)

Encomendados pela Fundação Bradesco, que mantém a escola na fazenda, de 2 500 hectares, os alojamentos levaram quinze meses para ser construídos e tiveram como ponto de partida a conexão da arquitetura com a cultura e as tradições locais. Daí o uso abundante de madeira e palha, as redes de descanso, os tijolos nas cores da terra, formando um conjunto que se destaca da paisagem, mas em nada dela destoa. “No primeiro dia de aula, foi uma surpresa. Nunca imaginei viver num lugar assim”, diz Samdla Matos Fonseca, de 15 anos.

SIMPLICIDADE - Madeira na escada e nas vigas: a decoração é a paisagem (Tuca Reinés/VEJA)

Sem um único aparelho de ar condicionado, o alojamento é fresco e a brisa circula sem parar, amenizando o calor intenso. Os beirais da cobertura avançam muito além dos cômodos, fazendo grandes sombras. O pé-direito alcança até 9 metros. Os quartos dão para um pátio interno, com árvores e plantas. Nas paredes, os tijolinhos compõem desenhos com pequenos vãos para a entrada de vento e luz, à moda do muxarabi da arquitetura árabe e de sua versão nacional, o cobogó. “Tem noite que a gente põe cobertor para dormir”, diz Thallyta Honorato, de 12 anos.

Conforme a tarde cai no Araguaia, as sombras e as luzes ressaltam ainda mais a elegância da arquitetura. As aulas terminaram, e é hora de as crianças aproveitarem os espaços coletivos, no andar acima dos quartos, aonde se chega por escadas e passarelas de ripa de madeira de reflorestamento. Elas dispõem de mesas de jogos e salas de estudo, de televisão e de computadores até as 10 da noite, quando todo mundo vai dormir. “Aqui os alunos têm mais conforto e qualidade de vida do que em casa”, compara Ricardo Rehder, diretor de ensino da escola desde 2004, quando se mudou com a mulher e os dois filhos de Mato Grosso do Sul para Canuanã. “E o modo de viver impacta diretamente no resultado escolar”, afirma. De fato, a diferença é notável: de 2017 para cá, o porcentual de alunos com notas abaixo da média caiu de 70% para 40%.

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COR LOCAL – Tijolos com espaço para ventilar e desenho indígena nas portas: para as crianças se sentirem em casa (Tuca Reinés/VEJA)

Os seis projetos que chegaram à etapa final do prêmio Riba, concedido a cada dois anos a partir de critérios como inovação, sustentabilidade e engajamento dos usuários, foram visitados ao menos três vezes pelos jurados. Entre os finalistas estavam o câmpus da Central European University, na parte histórica de Budapeste, na Hungria, e dois prédios de apartamentos em Milão, na Itália, com plantas em toda a fachada. O alojamento da escola de Canuanã — oficialmente, Colégio Dr. Dante Pazzanese — deixou todos para trás. “É um ambiente excepcionalmente bem projetado, que ilustra o valor de um bom design educacional”, avalia Ben Derbyshire, presidente do instituto. Em um canto isolado do cerrado, a beleza fez toda a diferença.

Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2018, edição nº 2611

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