Pouco mais de dois anos após seu discurso inaugural como chanceler, Ernesto Araújo deixou o Itamaraty. Naquele discurso em 2019, assombrou os presentes com as frases em grego e tupi. Já em sua saída, vitimou-se num harakiri diante da poderosa presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, buscando construir uma narrativa de que teria sido destronado por defender o interesse nacional.
Diante destes eventos, pode-se refletir sobre o que ocorreu nestes dois anos, e que rumos pode tomar a política externa do Brasil nos próximos dezoito meses do Governo Bolsonaro.
Há que se reconhecer que a gestão Araújo chacoalhou o Itamaraty, embora suas consequências não tenham sido em geral positivas. Houve uma renovação geracional em postos importantes e no segundo escalão, que destoou da hierarquia marcante na Casa. Se esta renovação arejou algumas ideias, também criou resistências dos diplomatas mais experientes (muitos deles preferindo consulados discretos à beira mar).
Houve também intentos de inserção ideológica na formação dos diplomatas mais jovens. Quem quiser assistir às palestras (disponíveis online) na Funag ou no Instituto Rio Branco verá o intuito de aplicação do olavismo à política externa, com sua explicação peculiar quanto ao funcionamento do mundo e à hipotética ameaça globalista que nos sitia.
No aspecto prático da política externa, pode-se enumerar uma sucessão de equívocos, às vezes induzidos pela visão ideológica, às vezes provocados pelo caráter indômito do Presidente da República.
Assim, o governo brasileiro interveio desastrosamente na eleição argentina, a favor do candidato vencido. Adotou uma postura belicosa em relação à Venezuela, que acabou por suspender qualquer diálogo com o grupo que se manteve no poder. Fez aposta equivocada na crise política na Bolívia, que acabou por afastar a influência brasileira. Alinhou-se automaticamente ao trumpismo, com manifestações impertinentes sobre as confusas eleições norte-americanas. Adotou um viés tormentoso em relação à China, nosso principal parceiro comercial. Promoveu embates com a União Europeia, que impedirão a efetivação do acordo Mercosul-UE, pelo menos durante o governo Bolsonaro.
Como efeito da leitura ideológica do mundo, o Itamaraty de Araújo destoou de posturas históricas do Brasil em temas sociais. Passou a votar com Arábia Saudita, Hungria e Polônia nas pautas relativas a direitos das mulheres, diversidade e direitos reprodutivos, para exasperação dos aliados históricos do Brasil.
Lendo os parágrafos acima, não é se surpreender que o Brasil tenha perdido protagonismo, e que tenha havido seu isolamento neste período, isolamento reforçado pela coincidência da crise sanitária inaudita a afetar o País. Ironicamente, a situação sanitária e o atraso no acesso às vacinas acabaram por selar o destino de Araújo. A ironia, no caso, advindo do fato de que a responsabilidade inicial sobre a negociação das vacinas sequer era do Itamaraty.
De toda forma, e com cara nova, o Itamaraty enfrentará os desafios adiante. Em primeiro lugar, o de voltar a garantir a liderança natural do Brasil na América do Sul. Para isso, deverá restabelecer laços com seus vizinhos, sobretudo com a Argentina. Nesse sentido, caberá ao Itamaraty convencer a equipe econômica de que o Mercosul não é apenas uma lista de tarifas, mas um elemento geopolítico estratégico para os interesses brasileiros na região.
Além disso, o Itamaraty deverá se esforçar para recuperar a imagem internacional do Brasil, desgastada pelos equívocos mencionados. Em sua melhor tradição camaleônica, nossos diplomatas deverão reasseverar que, agora, os princípios constitucionais da cooperação, defesa da paz e prevalência dos direitos humanos voltarão a esplandecer no Palácio Itamaraty.
Particularmente, esta recuperação da imagem terá de atentar aos desafios ambientais, tema no qual o Brasil passou de proponente a pária internacional, neste último período. Além do desgaste de sua imagem e liderança, há riscos de materialização de barreiras concretas contra exportações brasileiras, em seus setores mais dinâmicos, como o agronegócio.
Seguramente, o novo chanceler tem clara consciência quanto a esses desafios. Diplomata de carreira, respeitado em seu meio, embora seja menos experiente que outros nomes da diplomacia brasileira. Dele, já há expectativa de maior previsibilidade e menos rompantes criptonacionalistas. Espera-se também que sua capacidade de convencimento seja afiada, a ponto de convencer o presidente de que qualquer frase atribuída ao Brasil tem efeitos para a imagem, o comércio e os investimentos no país.
* Welber Barral é estrategista de comércio exterior do Banco Ourinvest. Doutor em Direito Internacional (USP)