Desde a semana passada, a seção de livros mais vendidos de VEJA ilustra um fenômeno sem precedentes na história do mercado editorial brasileiro: pela primeira vez, a venda de títulos em livrarias físicas praticamente desapareceu do levantamento; somente o comércio on-line está representado naquela que tem sido uma bússola dos humores desse setor. E a tendência é que o movimento não só continue como se aprofunde por semanas (ou meses) a fio. A culpa, claro, é do coronavírus. Assim como ocorre com a indústria do cinema ou o negócio bilionário dos shows e festivais, a pandemia teve um efeito avassalador sobre a vida de livrarias, editoras e autores. Nesse caso, porém, o estrago das inevitáveis medidas de restrição social se soma a uma crise crônica que se arrasta no mundo editorial há coisa de cinco anos e ameaça levar de roldão as principais redes do país. O coronavírus surge como um catalisador capaz de acelerar as profundas mudanças no segmento.
Com a quarentena decorrente da Covid-19, as livrarias fecharam suas portas e viram a margem de lucros no setor em geral, que era de aproximadamente 4%, transformar-se em imenso prejuízo. As primeiras consequências surgiram por volta de 11 de março, quando a OMS declarou que o mundo vivia uma pandemia. A pedido de VEJA, a Yandeh/Bookinfo, empresa de tecnologia que monitora os números desse mercado com base na movimentação na boca do caixa de 250 pontos de venda de livros no país, mediu os efeitos devastadores. O faturamento desse conjunto de livrarias, que ficava na casa de 13,6 milhões de reais na semana anterior à decretação da pandemia, registrou uma queda dramática de quase 92% na semana de 23 a 29 de março. Como esperado, o volume de mercadorias vendidas também acompanhou a queda, registrando um tombo de 80% se comparado aos números da semana que precedeu o confinamento.
O recrudescimento da crise piorou a situação de duas redes tradicionais que já viviam dias complicados. Com alguns percalços no caminho, a Cultura e a Saraiva haviam conseguido aprovar seus planos de recuperação judicial no ano passado. A Cultura o fez em abril. Já a Saraiva, em agosto, quando acatou uma das exigências dos credores: o afastamento de Jorge Saraiva Neto do comando da operação. A relação muitas vezes conflituosa entre a maior varejista do mercado livreiro e as editoras esboçava, assim, uma distensão. Mas o frágil equilíbrio foi rompido quando a empresa viu suas 74 operações ser fechadas em todo o país devido à Covid-19. Logo a Saraiva emitiu um comunicado às editoras com teor de calote explícito. “Diante deste cenário de crise sem precedentes e falta de visibilidade das vendas futuras, adotaremos uma medida austera, mas necessária, de suspensão imediata de todos os pagamentos por prazo indefinido”, diz a mensagem, assinada pelo então diretor comercial, Deric Degasperi Guilhen. Dias depois, a empresa entrou com uma petição na Justiça para revisar seu plano de recuperação. As editoras ficaram ressabiadas. “O varejo em geral procurou as editoras para renegociar os pagamentos. A Saraiva, não”, ressalta Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e sócio-fundador da editora Sextante. Na sequência do anúncio da suspensão de pagamentos, Luis Mario Bilenky, CEO contratado pela Saraiva em janeiro, pediu demissão — e Guilhen assumiu seu posto.
O coronavírus tornou aguda a necessidade urgente de readequação do setor — na verdade, quase uma imposição darwinista na nova atmosfera dos negócios. Desde meados dos anos 1990, as grandes redes, com Saraiva e Cultura à frente, investiram numa política de expansão desenfreada, inaugurando megastores em shopping centers pelo país afora, pagando aluguéis a peso de ouro. Como, ao mesmo tempo, a ascensão do mercado de vendas on-line ia dilapidando as vendas em lojas físicas, tal expansão não demorou a se revelar insustentável.
Apesar da frágil situação das duas empresas, a pandemia cria uma condição de exceção para a maioria das companhias que dependem de vendas em pontos físicos. Assim como bancos ou proprietários de imóveis renegociaram seus contratos com comerciantes dos mais variados matizes, os credores também precisam pensar na manutenção do ecossistema, e não apenas nos valores previstos para os próximos três meses. Até por isso mesmo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou uma portaria que flexibiliza as regras da recuperação judicial, permitindo uma renegociação em caso de impossibilidade do cumprimento das obrigações. As novas orientações valem para todas as empresas brasileiras que se encontram nessa situação, desde a Saraiva até a Odebrecht — dona do maior plano de reestruturação corporativa do Brasil.
As dificuldades das livrarias são o primeiro e um claro exemplo de como pode ser devastador o efeito dominó que recai sobre todo o setor. “Mesmo com o retorno das atividades, muita gente terá perdido o emprego. As pessoas estarão sem dinheiro e com medo de frequentar lugares fechados. Nós não vamos voltar a vender como antes”, prevê o empresário Alexandre Martins Fontes, que gerencia duas livrarias físicas em São Paulo e a editora que leva seu sobrenome. “Nas últimas três semanas, nosso faturamento total caiu 57%, mas as vendas on-line subiram 23%”, informa ele. O gigante do varejo digital Amazon surge como o óbvio beneficiado pelo ocaso das livrarias físicas — no conjunto dos 100 principais títulos da lista de Mais Vendidos de VEJA, sua participação no volume total passou de quase 30% para 73% desde o início da pandemia. Entretanto, se examinados com lupa, os números mostram que as vendas da própria Amazon, sob esse mesmo critério, subiram num primeiro momento, mas depois também sofreram queda.
Em decorrência da crise, as editoras tiveram de buscar novos caminhos para se reinventar. Enquanto algumas resolveram apostar em marketplaces, espécie de shoppings virtuais, para mitigar a dependência das grandes livrarias, outras viram os clubes de assinatura como uma oportunidade. Eles ganharam milhares de adeptos e abarcam empresas de diversos tamanhos, como a gaúcha TAG e a Leiturinha, voltada ao público infantil. Mas editoras como Companhia das Letras, Record e Intrínseca também já fazem parte deste coletivo. Além disso, uma aposta promissora no ambiente virtual são os audiolivros e os chamados instant books, muito utilizados por pessoas que querem devorar uma obra rapidamente. Para as livrarias, uma visão menos romântica seria a adoção de outro modelo que tem ganhado força em países da Europa: o da impressão sob demanda. “Talvez o futuro da livraria seja tornar-se uma loja de conveniência, com a impressão no ato. Mas eu ainda a vejo com uma função de extrema importância, de um encontro com a civilização”, afirma Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias (ANL). Que o drama circunstancial do coronavírus traga luzes a esse setor tão essencial.
Com reportagem de Amanda Capuano e Tamara Nassif
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682