Criado no início dos anos 2000 por um grupo de estudantes da Harvard, o Facebook nasceu com o propósito de transportar para a internet as relações sociais do dia a dia da faculdade. Rapidamente, passaram a ganhar fôlego na plataforma conversas corriqueiras, fofocas estudantis, paqueras e até episódios de bullying entre os universitários, como mostra o filme A Rede Social, que retrata o surgimento da companhia. A partir da Harvard, a plataforma se expandiu para outras universidades, fez um sucesso estrondoso e se tornou ferramenta praticamente obrigatória nas relações sociais atuais. À parte o tamanho mastodôntico, o Facebook manteve traços de sua origem, como o de ser uma tribuna aberta a todo tipo de discurso, o que inclui comentários misóginos, homofóbicos, xenófobos e até mesmo racistas. O que no passado parecia apenas um efeito colateral à pluralidade de opiniões hoje não é encarado com a mesma condescendência. Na verdade, a verborragia sem filtros dos usuários da rede se transformou no calcanhar de aquiles do negócio, controlado pelo fundador Mark Zuckerberg — o quarto homem mais rico do mundo, dono de uma fortuna estimada em 85,4 bilhões de dólares.
Nos últimos dias, o Facebook virou alvo de uma pesada artilharia, conduzida justamente pelas empresas responsáveis pela maior fatia de suas receitas. Mais de uma centena de marcas globais decidiu interromper a veiculação de anúncios no Facebook e em outras redes sociais do grupo, como o Instagram, em um movimento que se estendeu para outros negócios semelhantes, como o Twitter. O alvo principal, contudo, era Zuckerberg, e o movimento das grandes corporações — Coca-Cola, Starbucks, Unilever, Ford, Honda e Levi’s, entre elas — atingiu o ponto mais sensível do Face: o cofre. Os anúncios dos primeiros boicotes fizeram as ações despencar 8,3% na sexta-feira 26, o que gerou uma corrosão de 59 bilhões de dólares no valor de mercado da companhia. E a sangria pode continuar nas próximas semanas. Um estudo da Federação Mundial de Anunciantes (WFA, na sigla em inglês) mostrou que mais de 400 grupos podem aderir ao boicote, preocupados com o discurso de ódio ou polarizações na rede. No Brasil, o impacto do boicote foi menor, mas pode crescer. Até a quarta 1º, multinacionais como Coca-Coca, Adidas, Microsoft e Puma haviam confirmado a retirada dos anúncios nas operações brasileiras.
Diante da pressão das empresas na Europa e nos Estados Unidos, Zuckerberg pôs seus melhores executivos para negociar formas de combater o discurso de ódio e as fake news na rede. Anunciou a criação de um centro de informações para monitorar publicações durante as eleições americanas, além do já inaugurado “tribunal” do Facebook, que julgará o que é aceitável ou não na plataforma. Não adiantou. O boicote das marcas põe em dúvida o real interesse de Zuckerberg de mudar os mecanismos de controle de conteúdo na rede. Ao acumular as qualificações de fundador, CEO e presidente do conselho de administração, uma concentração de poder rara até mesmo entre os colossos da tecnologia do Vale do Silício, ele é considerado pelos especialistas no assunto como uma das poucas pessoas capazes de mudar a situação. “Apesar de a internet ser como uma versão digital da praça pública, onde todos dizem o que bem entendem, as plataformas são empresas privadas, portanto têm donos, responsáveis pelo que divulgam”, explica Patrícia Peck, advogada especialista em direito digital.
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Clique e AssineEsse não é o primeiro boicote sofrido pelo Facebook. Após o escândalo envolvendo a consultoria Cambridge Analytica, que utilizou a plataforma para coletar dados de eleitores nos Estados Unidos e no Reino Unido, o Facebook fez uma dezena de promessas de que não se envolveria mais em desvios éticos. Zuckerberg chegou a ser chamado para dar explicações no Congresso americano. Pouca coisa mudou, contudo. Um publicitário de uma agência que atende quinze empresas de médio e grande porte e que trabalha com o Facebook em campanhas brasileiras disse a VEJA, com a condição de anonimato, que a plataforma ainda é muito vulnerável, principalmente porque qualquer pessoa pode criar um perfil fictício e postar conteúdos de origem obscura. “Só precisam se identificar aqueles que pagam para impulsionar suas publicações”, diz ele. Pela segunda vez em dois anos, Mark Zuckerberg está na desconfortável situação de convencer a opinião pública de que é capaz de conter o discurso de ódio em suas plataformas. A questão é se, desta vez, cumprirá as promessas.
Publicado em VEJA de 8 de julho de 2020, edição nº 2694