O ex-ministro da Fazenda, Mailson da Nóbrega, voltou para o Brasil em 1987 a convite do então titular pasta Luiz Carlos Bresser Pereira. A intenção era que ele assumisse a secretaria-geral do Ministério e ajudasse Bresser na missão de consertar os estragos de seu antecessor, Dilson Funaro, que havia decretado a moratória da dívida. Com a decisão, o crédito internacional havia secado, a economia começava a enfrentar paralisia e a inflação estava fora de controle. O economista, em dezembro daquele ano, acabou por assumir a direção da pasta, pois Bresser decidira renunciar. Primeiramente de forma interina, e depois confirmado pelo presidente José Sarney, Mailson da Nóbrega acompanhou de perto as renegociações junto aos credores, na tentativa de recuperar, ao menos em parte, a confiança deles no país. Tornou-se assim testemunha ocular do preço que paga um país que decide interromper os pagamentos de suas dívidas de forma unilateral e confrontadora.
O colunista de VEJA aponta que a medida mostrou-se um erro, não só econômico, mas também de cálculo político. Aqueles que a decretaram acreditavam que conseguiriam o apoio da população a uma saída que buscava culpar os credores externos pelos problemas brasileiros. Criam também que a popularidade do governo poderia voltar a subir. Como a história provou, não deu certo.
Ele explica também que a crise de dívida da América Latina na década de 1980 guarda muitas semelhança com o que hoje se vê na Europa. A condução da crise no continente europeu hoje, aliás, aplica lições tiradas da própria experiência latina.
As condições fiscais do Brasil em 1987 encontravam-se muito deterioradas e o governo acabou decidindo pela moratória de sua dívida. O senhor concorda com a decisão tomada?
Foi claramente um erro. A moratória não se justificou como uma decisão racional do ponto de vista econômico. Ela teve, na verdade, um componente inequivocamente político, que era, de um lado, esconder o fracasso do Plano Cruzado e, de outro, recuperar a popularidade do governo. Havia uma percepção equivocada em Brasília de que a população apoiaria o calote contra as instituições financeiras internacionais, pois o prestígio delas não era muito grande.
A medida foi influenciada também por razões ideológicas, de que era, por exemplo, preciso se contrapor aos credores externos – sobretudo ao Fundo Monetário Internacional (FMI), que é peça-chave de qualquer negociação. Um dos principais assessores para a área internacional do ministério da Fazenda na época era o Paulo Nogueira Batista – que tinha visões, e ainda tem, preconceituosas contra o sistema financeiro internacional. O ministro Dilson Funaro e seus assessores achavam que, depois de declarada a moratória, o país se recuperaria do baque do Plano Cruzado. Dizer não ao FMI era palavra de ordem para muita gente. É bem verdade que a esquerda brasileira já pregava isso há muito tempo.
Antes de declarar a moratória, em fevereiro de 1987, o Brasil vinha negociando com os credores. A medida foi uma surpresa. Essa mudança de posição deu-se unicamente por essas razões ideológicas?
Na verdade, foi uma somatória de fatores, mas os elementos políticos e ideológicos tiveram peso. Até então o governo brasileiro vinha conduzindo bem as negociações por diferentes ministros numa década, a de 1980, que foi muito difícil para toda a América Latina – e ninguém imaginava que o Palácio do Planalto ia partir para uma atitude radical. O Brasil foi o único país da região que optou por fazer a pior espécie de moratória: aquela que desdenha do credor.
Grosso modo, existem dois tipos de calote. Um é aquele em que o devedor não pode pagar, mas demonstra o desejo de fazê-lo sob certas condições negociadas. A outra é a moratória em que o devedor demonstra a intenção de não pagar – e normalmente age de maneira confrontadora. Essa foi a moratória brasileira de 1987.
Não satisfeitos em decretar um calote de maneira unilateral e confrontadora, os assessores do ministro Funaro comemoraram a queda das ações dos bancos na Bolsa de Nova York – e isso foi descoberto e noticiado pela imprensa. De fato, lembro que as ações do Citibank despencaram com a ação do governo brasileiro, pois era o banco mais exposto à América Latina. Dias depois do calote, o grupo anunciou uma provisão de 3 bilhões de dólares. Temia-se, na época, que outros países seguissem a nossa sandice, o que felizmente acabou não sendo o caso.
Em resumo, o Brasil foi o único prejudicado por sua própria insensatez. Nossa credibilidade ruiu e a economia doméstica sofreu um choque.
O impacto na economia brasileira deu-se basicamente por conta das linhas de crédito internacional que ‘secaram’?
Na verdade, a crise não só atingiu o setor bancário, mas também o mundo empresarial. As linhas internacionais de crédito desapareceram rapidamente – e crédito é essencial para qualquer economia. Mas os negócios que estavam sendo preparados também foram suspensos. O problema não era apenas de dinheiro, mas também de confiança. O Brasil começou a entrar numa situação quase de pária do mercado internacional, decepcionando todos que achavam que o país era sério.
A forma como foi feito o calote foi questionável e as consequências, muito duras. Contudo, era possível ter evitado a moratória?
O governo não poderia ter evitado isso. O Brasil havia chegado num ponto em que não conseguia mais pagar sua dívida. Era uma situação que hoje se assemelha muito com o que vive a Grécia. O problema, é preciso deixar claro, foi menos a decisão em si, e mais a forma como foi feita.
As origens das crises latino-americana e europeia são parecidas: um forte endividamento resultante de um período de juros baixos e liquidez internacional abundante. Este quadro levou o governo e os cidadãos gregos a se endividarem excessivamente, levados por uma febre de consumo e gasto típica de momentos de euforia.
Na América Latina dos anos 1970, as condições favoráveis da economia mundial permitiram que a região, a despeito do aumento dos preços do petróleo e da posterior elevação dos juros nos Estados Unidos, continuasse a se expandir mais do que poderia. Esse processo resultou em déficits correntes crescentes nos balanços de pagamentos que foram financiados justamente com endividamento externo.
No caso do Brasil, uma parte importante da deterioração das contas públicas deu-se pelos megaprojetos da segunda etapa do Plano Nacional de Desenvolvimento, o chamado II PND. Quando veio a crise do petróleo, o país, em vez de se ajustar, decidiu acelerar o processo de substituição de importações. Em resumo, não só manteve o modelo, como o aprofundou. Aí, as indústrias química, petroquímica, de bens de capital, etc, deram um salto graças ao financiamento externo. Com a moratória mexicana de 1982, a facilidade de obter crédito no exterior acabou.
Pela importância da Europa na economia mundial, e também pela importância política do projeto da zona do euro, percebemos um enorme cuidado das autoridades com a Grécia, que ganha prazo e pacotes de socorro. A América Latina não teve tanta colher de chá, né?
Na verdade, a maneira como se reage hoje na Europa guarda relação com as lições oferecidas pela própria crise da dívida latino-americana.
No início, a América Latina viveu uma experiência muito parecida com a que se verificou também no continente europeu no período recente, isto é, imaginava-se que a crise poderia ser passageira, que bastava aos países se ajustarem e o crédito voltaria.
Como isso não aconteceu, ao longo da década de 1980, houve uma onda de renegociações para mudar prazos e condições – enfim, o perfil da dívida. Houve também mais pressão para os países fizessem reformas que ajustassem suas economias. Novos créditos do FMI, dos bancos e do Clube de Paris, que eram os governos, foram liberados paulatinamente.
Só no final da década que os reguladores puderam perceber que o problema da América Latina era de excesso de endividamento – e que sua solução implicaria, portanto, a necessidade de um perdão parcial dos débitos.
Essa constatação levou muito mais tempo para ser percebida na nossa região que agora na Europa, e credito isso, entre outros fatores, à própria aprendizagem com a experiência brasileira, mexicana, etc.