Uma das lições que a pandemia nos impôs foi aprender a viver sem fazer planos, sem saber o que esperar do futuro. Esse aprendizado eu fui obrigada a assimilar bem antes. Ao lidar com uma depressão e com um grave problema na coluna, percebi que fazer planos é gastar energia à toa. Vivo um dia de cada vez. Uma obra de cada vez. Uma música após a outra. Acabo de lançar Sinal Fechado, meu primeiro single desde 2018. Esse hiato sem novidades se deu por diversos motivos. E a pandemia foi só um deles.
Antes do coronavírus, fiquei dez anos de quarentena. Em 2010, passei por uma cirurgia na coluna que deu errado. Quase morri. Fiz mais duas cirurgias em seguida e fiquei seis meses sem botar o pé no chão. Vivi dez anos à base de morfina. Minha rotina era: morfina, cama, trabalho (a música era a única coisa que me deixava feliz). Chegava ao palco de cadeira de rodas, cantava, voltava para casa, e mais morfina.
Nessa época, meu irmão mais velho, o Zé (o diretor teatral José Possi Neto), preocupado comigo, leu alguns textos que eu estava escrevendo. Eram desabafos sobre outra dor que eu tinha: minha experiência com a depressão. Transformamos o material no espetáculo À Flor da Pele, no qual pude falar sobre como a depressão dói. Comecei a me enxergar com outros olhos. Cantar sobre isso me ajudou a ficar equilibrada, me senti até mais bonita. É comum a frase “lutar contra a depressão”. Mas lutar contra é burrice. Se eu tivesse assumido, tido a humildade de entender que estava deprimida, eu teria me curado mais rápido. Ou melhor, curado não, porque não existe cura: teria aprendido a conviver com ela. Depressão é uma doença, como diabetes.
A primeira vez que notei algo errado foi em 2001. Eu estava na reunião de uma capa de disco e me falaram: “Seu irmão Neco (Luiz Possi) está morrendo, vai para o hospital”. Tomei um susto e pensei: “Eu canto música de amor, mas não vi meu irmão do meio morrendo debaixo do meu nariz”. Ele tinha lúpus eritematoso. Conseguiram salvá-lo e ele teve mais dez anos de sobrevida. Pouco depois, chegou o 11 de Setembro e a queda das Torres Gêmeas. Naquele dia, liguei para o Neco e, quando desliguei o telefone, me toquei da alegria que era tê-lo vivo. Então eu desabei. Comecei a chorar. Chorei das 9 horas da manhã até as 9 da noite. Um amigo me falou que eu precisava de ajuda. Foi um período barra-pesada, uma depressão perigosa. Percebi que pensar em suicídio não era vingança ou algo do tipo, mas parecia uma libertação. Um médico me receitou um antidepressivo, mas ele demorou 65 dias para fazer efeito. Tive de domar meu vulcão até ficar, enfim, estável.
Já as dores na coluna chegaram a um ponto crítico. Se eu não passasse por uma nova operação, corria o risco de não andar mais. No começo de 2020, fiz uma cirurgia que me abriu inteira. Deveria durar três horas, mas durou sete. Foram colocados dois discos na minha coluna, onde estava osso com osso. Perdi um pouco de elasticidade, mas estou muito feliz com o resultado. Hoje posso subir e descer escadas, e pego meu neto no colo — meu melhor remédio.
Quando me perguntam como estou mantendo a sanidade na pandemia, digo que não sei se estou de fato fazendo isso. Perdi muitas pessoas para a Covid-19, entre elas meu ex-marido, Líber Gadelha, pai da Luiza. Sou do tipo que segura as pontas, não sei viver de outro jeito. Acredito que uma hora tudo isso vai sair de mim, não sei se em forma de loucura ou de criatividade. Enquanto não posso voltar aos palcos, minha grande paixão, estou isolada no interior esperando dias melhores. Cuido da minha família, de mim e do meu jardim. Pretendo lançar um novo single em breve, daqui a alguns meses. Um dia de cada vez.
Zizi Possi em depoimento dado a Raquel Carneiro
Publicado em VEJA de 26 de maio de 2021, edição nº 2739