Umberto Eco, um mestre em tempos de intolerância
No ensaio ‘Migração e Intolerância’, autor italiano examina a origem do preconceito em um exercício de compreensão histórica, social e humana
“A intolerância mais perigosa é exatamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, acionada por pulsões elementares. Por isso não pode ser criticada ou freada com argumentos racionais”. Em Intolerância, ensaio que integra o livro Migração e Intolerância, que reúne conferências proferidas entre 1997 e 2012, o escritor e pensador italiano Umberto Eco examina os complexos fenômenos do fundamentalismo, do racismo e do antissemitismo, precisamente sob a perspectiva unificadora do conceito que dá nome ao texto. Como costuma acontecer em seus escritos, a linguagem é acessível – quase uma conversa com o leitor – e vem acompanhada da farta munição histórica e cultural do autor. Eco discorre sobre dilemas que afetavam o Ocidente há séculos – do fundamentalismo que caracteriza as interpretações literais da Bíblia desde os tempos de Santo Agostinho ao racismo pretensamente científico do nazismo no século XX –, premido sobretudo pelas circunstâncias de crises migratórias que despontavam na Europa. Corria o ano de 1997, e a chegada de “12.000 albaneses no curso de uma semana” na Itália parecia, então, algo grave (quase um milhão de migrantes chegaram à Europa na crise de 2015) – tema, aliás, do ensaio de abertura desta breve coletânea, Migração.
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Clique e AssineO ensaísmo de Eco é assim: cativa por sua verdade duradoura, por sua atualidade renovada. Não se trata apenas de reconhecer que os dilemas do fundamentalismo religioso, do racismo, do antissemitismo e do preconceito com migrantes agravaram-se radicalmente quase um quarto de século depois. Isso é verdade, claro. Mas o que merece atenção cuidadosa do leitor é a possibilidade permanente de atualização da análise: uma intolerância “sem doutrina”, movida por “pulsões elementares” não esmorece em face de argumentos racionais, não é vencida com razão e objetividade. Poucas palavras poderiam ser tão rigorosamente precisas acerca da natureza do tipo de intolerância que caracteriza o mundo contemporâneo, este que avança no excêntrico, quase sádico, 2020 que coube a humanidade viver. Quando se pensa no fenômeno dos atuais populismos, por exemplo, de Donald Trump a Jair Bolsonaro, essa caracterização da intolerância, feita há mais de duas décadas, ganha ares de profecia.
O multipremiado autor de O Nome da Rosa, polímata a um só tempo genial e popular, tinha como horizonte nesses dois primeiros ensaios a virada do milênio, com as esperanças várias que animavam os homens de então ganhando os contornos de uma sociedade cada vez mais globalmente integrada, multicultural e materialmente próspera. O que aguardava a humanidade na curva da História, alguns anos à frente, contudo, era o recrudescimento dos nacionalismos, da xenofobia e do racismo; era o acirramento das crises migratórias; era, como se sabe tragicamente hoje, o terrorismo islâmico assimilado às rotinas das grandes cidades europeias. Nesse sentido, as palavras de Umberto Eco não poderiam deixar de provocar certa nostalgia por um tempo em que expectativas mais altas e justas pareciam fundamentadas.
Poucas palavras poderiam ser tão precisas acerca do tipo de intolerância que avança no excêntrico, quase sádico, 2020 que coube a humanidade viver. Quando se pensa no fenômeno dos atuais populismos, de Trump a Bolsonaro, essa caracterização da intolerância, feita há mais de duas décadas, ganha ares de profecia
É por isso que ler os breves ensaios de Eco reunidos em Migração e Intolerância, publicados pela editora Record, é um exercício singular de compreensão histórica, social e humana. Tome-se, por exemplo, o ensaio Um Novo Tratado de Nijmegen, que faz referência ao primeiro tratado de paz europeu, selado justamente naquela cidade holandesa em 1678. Nele, Eco apresenta uma síntese clara da formação da moderna identidade da Europa unificada e em paz: “De 1945 em diante, de maneira sutil, todo europeu passou a sentir que pertencia não somente ao mesmo continente, mas também à mesma comunidade, a despeito de muitas e inevitáveis diferenças linguísticas e culturais”. Essa constatação não o impediu de enfrentar as dificuldades que esse generoso projeto europeu trazia consigo, e reconhecer os limites do tolerável era essencial para definir a exata dimensão do legado do passado do Velho Mundo para sua identidade presente: “Há valores típicos do mundo europeu que representam um patrimônio do qual não podemos nos livrar”. Nessa leitura, experimenta-se a rara combinação de juízo histórico acertado, com nuances e sutilezas, mas cuja validade estende-se para além do circunstancial: em suas análises históricas e conjunturais, Eco inspeciona o futuro das possibilidades humanas.
Não que seus leitores estejam diante de uma novidade. Basta lembrar seu fabuloso ensaio Ur-Fascismo – o Fascismo Eterno –, publicado originalmente nas páginas da New York Review of Books, em 1995, e lançado em simpático volume separado no Brasil, ano passado. Ao listar as 14 características do fascismo – não do fascismo italiano, mas do fenômeno político, sociológico e psicológico a que se chama “fascismo” – Eco fala da disposição inimiga para com a cultura e para com a ciência (“as universidades estão cheias de comunistas”), do modo como o fascismo trata o “desacordo como traição”, como a “frustração social ou individual” turbinam o fascismo, explicando, assim, seu “apelo às classes médias frustradas”, bem como da “obsessão com teorias da conspiração”. Sem tirar nem pôr, essas características não apenas se fazem presentes como são proeminentes nos governos de populistas autoritários como os de Donald Trump, nos Estados Unidos, e de Jair Bolsonaro, no Brasil. Escrevendo sobre o fascismo há 25 anos, sob o impacto dos atentados terroristas de extrema-direita em solo americano, em Oklahoma, Umberto Eco oferecia um roteiro para a compreensão do fascismo “eterno” – esse dos dias atuais.
Felizmente, é possível resgatar de suas reflexões seu presciente apelo aos melhores valores e sentimentos das pessoas decentes, para que triunfem sobre o racismo, afirmem a tolerância e dediquem suas vidas ao respeito admirado pelas diferenças. São lições de que o mundo contemporâneo precisa com urgência.