A dança sempre fez parte da minha vida. Meu pai é professor de capoeira e me pôs para praticar. Eu levava jeito. Ao me ver em ação, uma amiga da família achou que tinha flexibilidade, gingado, e sugeriu que me matriculassem em uma academia de dança no Cachambi, subúrbio da Zona Norte do Rio de Janeiro, onde cresci e aprendi balé. Calcei as sapatilhas e logo me senti em casa. Meu primeiro salto veio aos 7 anos, quando meu pai ouviu falar de uma escola particular na qual haviam se formado brasileiros que, mais tarde, foram parar na Ópera de Viena e no Royal Ballet de Londres. Fui fazer teste lá para conseguir uma bolsa, já que não podia pagar. Havia muita gente talentosa, estava nervosa, mas consegui espantar o medo. Me selecionaram e engatei numa dura rotina de estudos e dança. Os ensaios exigem muito do dançarino. Com o tempo, fui de uma companhia a outra, até que mandei um vídeo para a prestigiadíssima Ballet Black, de Londres, que estava recrutando gente mundo afora. E me escolheram. Nunca imaginaria voar tão longe, muito menos ganhar o prêmio que me concederam há poucas semanas, o mais importante nos palcos da Grã-Bretanha.
Quando a diretora do balé inglês me mandou um e-mail e falou “o contrato é seu”, em 2013, não pensei duas vezes. Fiz as malas para Londres e aprendi tudo na marra, a começar pelo inglês. A Inglaterra me abriu muitas portas, me colocando em contato com bailarinos das mais famosas escolas de balé clássico e contemporâneo do planeta. Nesse ambiente favorável, minha evolução foi rápida. Passei então a ocupar o posto de bailarina sênior, do qual tenho grande orgulho, e a dar aulas para os mais jovens. Foi um passo após o outro, colocando sempre a dança no centro da vida. Aí tive a surpresa de ser convidada, no ano passado, a interpretar Nina Simone (1933-2003), a ativista americana que se dedicou à luta pelos direitos civis dos negros, em plena cena londrina. Certamente o maior de todos os desafios que encarei.
Tinha sofrido uma lesão na temporada anterior e fiquei meses de molho. Foi o período que aproveitei para mergulhar no universo de Nina — li e assisti a tudo sobre ela. Na volta ao tablado, ensaiei obsessivamente e, no fim, era como se fôssemos uma pessoa só. Os holofotes se apagavam, ia para a coxia e tinha até dificuldade de sair da pele dela, de tão imersa que estava. Ao saber da indicação para o Olivier Awards na categoria Realização Mais Notável de Dança, já estava treinando para outro recital. Nem acreditei: era a primeira vez que uma bailarina negra concorria individualmente. No dia da cerimônia de entrega do prêmio, me vi cercada de celebridades e figuras de peso da dança. Ouvir meu nome ser chamado ao palco foi de uma emoção única. Fez-se um silêncio e desabafei na frente de todo mundo: “Nossa, isso realmente está acontecendo”, disse.
No Brasil, é mais difícil viver da arte. Muitos talentos se perdem por falta de incentivo. O balé ainda é um meio elitista, caro demais para quem quer praticar a sério e participar dos concursos internacionais. Meus pais fizeram todo tipo de bico para comprar meu material e pagar o que fosse preciso: venderam doces, pegaram turnos extras no trabalho, tudo para eu seguir o meu caminho. Também o racismo é um obstáculo nesse universo. Várias vezes, fui a única menina negra nos salões. Era como se aquele ambiente não fosse para mim. Aí via outra bailarina de pele escura nas competições, tomava inspiração e renovava o gás. Cheguei a fazer parte da comissão de frente de escolas de samba no Carnaval carioca e de quatro companhias brasileiras, entre Rio e São Paulo. Mas os contratos são por temporada no Brasil — instabilidade que precisa ser superada em nome da arte. A aclamação no exterior é uma realização e tanto, mas ainda quero ser reconhecida em meu país. É o salto que me falta.
Isabela Coracy em depoimento a Paula Freitas
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894