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Revolucionária da contenção

No estupendo 'Os Contos', seleção feita sob a avaliação severa da autora de 95 anos, Lygia Fagundes Telles reafirma sua maestria imbatível no gênero 

Por João Cezar de Castro Rocha
Atualizado em 1 mar 2019, 07h00 - Publicado em 1 mar 2019, 07h00
Os contos,  de Lygia Fagundes Telles (Companhia das Letras; 752 páginas; 99,90 reais e 44,90 reais na versão digital) (.)

A narradora de Herbarium, publicado em Seminário dos Ratos (1977), apaixonada por “um vago primo botânico convalescendo de uma vaga doença”, lançou mão de recurso ficcional, cujo método definiu com rara consciência: “Aparecendo a ocasião, eu enveredava por caminhos os mais imprevistos, sem o menor cálculo de volta. Tudo ao acaso”. E, assim, “inventava histórias que encompridavam a mentira”, tornando a palavra uma forma precoce de sedução. O artifício, contudo, era muito conspícuo e, por isso, o primo atalhava a imaginação acesa da menina: “ ‘Agora você vai contar direitinho como foi’, ele pedia tranquilamente, tocando na minha cabeça”. O ritmo do gesto tornava-o desencorajador, e mesmo involuntariamente humilhante.

Os Contos reúne a produção de Lygia Fagundes Telles no gênero, cuja extensão não comporta paralelo fácil. Ora, tendo publicado seu primeiro livro de contos aos 15 anos, Porão e Sobrado (1938), a presente coletânea de 85 textos colige até a homenagem a Machado de Assis, Ou Mudei Eu?, saída em dezembro de 1998 na revista Brasmotor. Seis décadas, portanto, dedicadas à carpintaria de uma assinatura única. Em Os Contos somente foram recolhidos textos a partir de Antes do Baile Verde (1970) — nada menos do que cinco títulos e o volume Histórias Escolhidas (1964) foram suprimidos pela severa avaliação da escritora paulistana de 95 anos.

Severidade que se espelha no remate das frases e na contenção estrutural que tensiona todos os seus contos. O desejo do narrador-escritor de Verde Lagarto Amarelo, em Antes do Baile Verde, bem poderia ser lido como uma confissão discreta: “Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto”. Parto às avessas, gestação que nunca se interrompe: é preciso dispensar a facilidade de entregar “tudo ao acaso” ou a comodidade de “contar direitinho”. Pelo contrário, Lygia Fagundes Telles aperfeiçoou uma maneira de conduzir o leitor a uma desorientação muito bem elaborada — por assim dizer. Nas palavras de Walnice Nogueira Galvão, no posfácio “O Olhar de uma Mulher”, os contos produzem um efeito desnorteador: “A tensão dos embates não é resolvida e o conflito fica pairando, a perturbar o leitor”.

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Escutemos também — e sempre — a autora. Em A Mão no Ombro, reunido em Seminário dos Ratos, o tom chiaroscuro é encarecido: “Era uma lua ou um sol apagado? Difícil saber se estava anoitecendo ou se já era manhã no jardim que tinha a luminosidade fosca de uma antiga moeda de cobre”. No fim do texto, a cor metálica retorna como baixo contínuo que funde a dimensão onírica com a realidade dura da indesejada das gentes, isto é, a morte: “A paisagem foi se aproximando numa aura de cobre velho, estava clareando ou escurecia?”.

Sem dúvida, uma questão de perspectiva, e precisamente não defini-la permite anotar a novidade elegante da literatura da autora de As Horas Nuas (1989). O escritor e ensaísta Flávio Carneiro propôs uma distinção feliz entre transgressão ruidosa e silenciosa. Se a primeira define a estratégia da vanguarda, que inova na exata proporção em que celebra o próprio ato, a segunda se concentra na fatura interna à obra, negligenciando o aspecto, digamos, promocional. O esgotamento do modernismo favoreceu o modelo da transgressão silenciosa; noção adequada à maestria sutil da escrita de Lygia Fagundes Telles.

Nesse sentido, a autora de Verão no Aquário (1963) dificilmente explicita a intertextualidade que atravessa seus contos, nos quais surgem aqui e ali alusões a Dante, Zola, Jules Verne, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Alexandre Dumas, Oscar Wilde, entre tantos muitos outros nomes, em geral, guardados nas entrelinhas. Revolucionária da contenção, Lygia Fagundes Telles implode as expectativas do leitor com vigor surpreendente porque na superfície do texto tudo parece calmo. É como se sua letra dialogasse com a paleta de Giorgione (1478-1510), mestre da escola de Veneza cujas telas, em aparência fiéis aos modelos canônicos de representação de sua época, sempre apresentam um excesso ou uma ausência de elementos que ainda hoje driblam os intérpretes. Vale dizer, seguimos desentendendo apaixonadamente A Tempestade, quadro concluído em 1508. Os contos de Lygia Fagundes Telles evocam essa potência incomum. Tal potência assegura ao conto Seminário dos Ratos a “pervivência” que Walter Benjamin atribuiu às obras-primas.

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Lido na época como uma crítica à ditadura militar, relido em 2019 traduz à perfeição o clima de paranoia de teorias conspiratórias cruzadistas que assolam o país. Recorde-se a premonitória fala do secretário de Bem-­Estar Público e Privado: “Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. (…) Mostrar só o lado positivo, só o que pode nos enaltecer. Esconder nossos chinelos”. Como sabe o leitor, conselho olvidado com frequência. Há mais: por meio de um conjunto notável de contos — A Caçada, As Formigas, Tigrela, Lua Crescente em Amsterdã, A Mão no Ombro, História de Passarinho —, Lygia Fagundes Telles elabora um tema que talvez só hoje se compreenda bem. Trata-se do princípio das metamorfoses, sem dúvida ecoando Ovídio, mas, aqui, com uma força antropológica que ainda não reconhecemos. A autora pôs em rotação signos de um devir outro, que, muitas vezes, se revela um devir animal. Nada mais contemporâneo e urgente do que pensar com seriedade na frase do desencantado personagem de Lua Crescente em Amsterdã: “Não quero é voltar a ser gente (…). Queria ser um passarinho”.

Talvez ainda haja tempo.

Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624

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