Um homem de passado traumático assina um contrato para ter uma relação de dominante e dominado com uma mulher. O enredo do novo filme de Roman Polanski, A Pele de Vênus, em cartaz desde quinta no país, não poderia ser mais familiar em tempos de Cinquenta Tons de Cinza, o livro da britânica E. L. James que demoveu o pudor dos leitores e recolocou o erotismo na lista dos mais vendidos. A comparação, contudo, também não poderia ser mais descabida. Baseado na obra do austríaco Leopold von Sacher-Masoch (1836-1895), autor que deu origem ao termo masoquismo, o longa narra a relação de dominação entre um homem e uma mulher e, em vez de perseguir um final feliz para o casal, se dedica a lançar com espirituosidade uma série de questões sobre gênero, sexo e poder.
LEIA TAMBÉM:
Montanha é a grande vilã no drama ‘Evereste’
Com De Niro e Anne Hathaway, ‘Um Senhor Estagiário’ é leve, mas tem drama
Em Cinquenta Tons de Cinza, a virginal Anastasia (Dakota Johnson no cinema) conhece o ricaço Christian Grey (Jamie Dornan), um homem atormentado que propõe a ela um acordo em que ele será o dominador e ela, a dominada. A doce Anastasia ajuda a curar as chagas de Grey, que se deixa suavizar à medida que se apaixona. Uma historinha água com açúcar, que não à toa foi chamada de “mommy porn” ou “pornô para mamães” ao redor do mundo. Já em A Pele de Vênus, cujo roteiro foi decalcado da peça que o americano David Ives escreveu a partir do livro de Sacher-Masoch, a relação entre Vanda (Emmanuelle Seigner, mulher de Polanski) e Thomas/Severin (Mathieu Amalric) passa longe do ideal romântico.
Vanda é o nome da personagem principal de Masoch, mas também da atriz que chega atrasada para fazer um teste para a peça que Thomas, um diretor de teatro, está preparando com base na obra do austríaco. Ela chega molhada de chuva, tagarela e um tanto grosseira, com uma aura rude e vulgar, e encontra Thomas de partida para um jantar com a noiva, depois de um dia de infrutíferas audições. Sem parar de falar, começa a trocar de roupa entre as cadeiras e saca da bolsa um surrado script do espetáculo, convicta de que conseguirá fazer o teste, apesar do atraso. Ainda dispara inferências sobre o texto que desagradam ao diretor – “Tem a ver com a música do Velvet Underground?”, “Não é muito machista? -, mas, apesar de irritá-lo, ela o vence pelo cansaço. Thomas, acuado e sem a menor esperança de reverter o dia ruim, dá uma chance para a atriz e aceita ler as falas de Severin, o aristocrata de Masoch, para compor com ela a cena de abertura da peça.
Vale dizer que Vanda, a atriz, não estava assim tão fora da razão: apesar de editor de uma revista progressiva, a On the Highest, que combatia o antissemitismo e defendia a emancipação feminina no século XIX, Sacher-Masoch foi acusado de misoginia por seu livro. Nele, Vanda, ainda que dominadora, assume um papel que lhe é atribuído por Severin, o aristocrata que, no fundo, teria o controle de toda a relação e converteria a personagem em uma deusa fria – uma Vênus – a seu bel prazer.
É nesse ponto do roteiro que uma primeira transformação – ou virada – se opera. Vanda, a atriz, se revela não apenas uma intérprete promissora, ao encarnar de modo marcial a deusa fria de Masoch, mas faz parecerem falsas as perguntas bobas disparadas sobre o texto, que ela demonstra saber de cor. Outra surpresa vem a seguir: a atriz que entrou atabalhoada pela porta do teatro começa a mostrar confiança e a dirigir o diretor, que anota atônito suas sugestões para a futura montagem.
Outras reviravoltas virão, como quando Vanda insinua saber demais da vida de Thomas e ter sido enviada para torturá-lo, e quando, mais perto do fim, eles trocam de papéis – e também de posição e de gênero. É ao longo dessas viradas que cresce o mistério do filme. Afeito a desenvolver tramas tensas em ambientes fechados, vide O Bebê de Rosemary (1968), O Pianista (2002) e O Escritor Fantasma (2010), aqui Polanski leva a tática ao paroxismo. Toda a ação do longa, de cerca de uma hora e meia, se passa dentro de um claustrofóbico teatro, com dois únicos personagens, que se desdobram em outros dois.
Símbolo do pacto pela fantasia traçado entre texto e espectador, o teatro serve também como palco para Polanski tecer uma trama dúbia, em que a identidade de Vanda, a atriz, escapa ao público ainda mais que a de Vanda, a deusa de Masoch. E para que Polanski desfile algo de sua autobiografia como gosta de fazer – disfarçadamente. Na troca de papéis, por exemplo, o ator francês Mathieu Amalric, que é a cara do Polanski jovem, se veste de mulher, como o diretor já fez O Inquilino (1976). Além disso, é impossível não relacionar o crime pelo qual o cineasta vem sendo perseguido há anos, o de se abusar de uma adolescente nos Estados Unidos, nos anos 1970, com o tema central do filme, o do jogo de poder entre os sexos.
Não é um filme leve ou superficial. Pode parecer, mas não é Cinquenta Tons de Cinza. É algo muito melhor.