Quando uma excursão levou índios da América para serem exibidos na Europa, no século XVI, muitos se apressaram em descrevê-los pelo que não tinham: não tinham roupa, não tinham moeda, não tinham Estado. Coube a Michel de Montaigne, em um de seus célebres ensaios, mostrar que aquilo que os europeus falavam sobre os índios tinha também muito a dizer sobre eles mesmos. Comparar é sempre uma forma de definir, a si e ao outro. E, como a própria diretora do filme levanta essa ideia, torna-se inevitável falar de Pequeno Dicionário Amoroso 2, que estreia agora no país, sem citar a trilogia iniciada por Antes do Amanhecer (1995), do americano Richard Linklater.
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Sequência da comédia romântica que levou 400.000 aos cinemas em 1997, Pequeno Dicionário Amoroso 2 mostra o reencontro de Gabriel (Daniel Dantas) e Luiza (Andrea Beltrão) quinze anos depois de sua separação. Ela já contraiu outros dois casamentos no caminho: no primeiro, finado, teve uma filha que está fazendo intercâmbio, no segundo, que se arrasta como um morto-vivo, teve um menino, que está começando a experenciar a puberdade. E montou, nesse período, uma deficitária galeria de arte com a ajuda do marido, um engenheiro workaholic bem-sucedido que, ela tem suspeitas quase certas, a trai o tempo todo. Gabriel, por sua vez, segue trabalhando com répteis e tem uma namorada novinha.
Sandra Werneck, a diretora do primeiro e do segundo filmes, em que tem a parceria de Mauro Farias, resolveu fazer o longa, tantos anos depois do primeiro, ao encontrar Andreia Beltrão em uma festa e imaginar como andaria a sua personagem, Luiza. A investigação é a mesma feita por Linklater em Antes do Pôr-do-Sol (2004), em que o casal de Antes do Amanhecer se reencontra após anos sem se falar, e em Antes da Meia-Noite (2013), em que eles estão casados e são pais de duas crianças. E diretora e elenco não descartam, ainda que num tom de brincadeira, voltar a examinar a vida de Luiza e Gabriel em um terceiro filme, daqui a alguns anos.
Há diferenças no roteiro, claro: Pequeno Dicionário brinca com a estrutura de Fragmentos de um Discurso Amoroso, de Roland Barthes, uma sacada do primeiro filme que se manteve no segundo. E seus personagens não são tão unidos como os de Linklater. São outro tipo de casal, vamos dizer, para não entregar demais. Mas, e essa é com certeza a maior distinção entre as duas séries, há uma enorme distância no conteúdo.
Pequeno Dicionário Amoroso é agradável de assistir e sem dúvida contribui para o cinema nacional, como indústria, por representar um gênero pouco explorado no país, o da comédia romântica. Mas não vai fundo na construção de seus personagens, e no que eles têm a dizer, como um filme de Linklater. A trilogia de Antes… é toda baseada em diálogos e nos personagens de Julie Delpy (Céline) e Ethan Hawke (Jesse). Eles falam o tempo todo e, à medida que falam, nós os conhecemos melhor.
Já Pequeno Dicionário Amoroso, seja ou 1 ou o 2, faz seus protagonistas dividirem cenas com outros personagens menores, que, tal como o núcleo engraçadinho de uma novela, entram para arejar a trama. Estão aí o adolescente Pedro (Miguel Arraes) em suas descobertas sexuais virtuais, Alice (Fernanda Vasconcellos), a filha de Gabriel, à volta com suas experiência sexuais reais, e Bel (Glória Pires), a sua ex-mulher esotérica, todos mais para tipos que personagens, a bem da verdade.
Desnecessário, se o objetivo for alcançar a profundidade de um Antes… Compreensível, se a meta for antes de tudo entreter o espectador. E o que Pequeno Dicionário Amoroso sabe fazer bem é isso: entreter. Produzido pela Globo Filmes, parece sob medida para uma Sessão da Tarde.