Um homem alto e loiro surge imponente em cima de uma pedra. De costas para quem vê a cena, o andarilho observa a paisagem montanhosa tomada por neblina e aprecia a natureza como se triunfasse sobre ela. Pintada em 1818, Caminhante sobre o Mar de Névoa sintetiza a obra de Caspar David Friedrich (1774-1840), pintor alemão cujo nascimento completa 250 anos em setembro. Para comemorar, uma série de exposições pipocam por seu país de origem: uma mostra dedicada a ele em Hamburgo, encerrada no início do mês, atraiu mais de 300 000 visitantes, e Infinite Landscapes, que acaba de abrir na Alte Nationalgalerie, em Berlim, está causando barulho ao reunir dezenas de pinturas e desenhos do artista romântico. Em agosto, será a vez de Dresden. E, em fevereiro de 2025, ele aterrissa no globalizado Metropolitan de Nova York.
Além de revisitar o trabalho de Friedrich, as comemorações têm um objetivo complexo: a tentativa de desatrelar a obra do pintor do totalitarismo nazista. Morto em 1840, Friedrich não é contemporâneo de Hitler, mas seu apreço por pintar a terra natal e o conteúdo das cartas enviadas ao irmão — nas quais se opõe à sua estadia na França pelo ressentimento que nutria por Napoleão — foram suficientes para torná-lo símbolo do nacionalismo germânico. Assim como todo o romantismo alemão, ele foi apropriado pela máquina de propaganda do Terceiro Reich: na abertura da Grande Exposição de Arte Alemã, em 1937, Hitler relembrou um incêndio que destruiu o Glaspalast (Palácio de Vidro), em Munique, e queimou milhares de obras, incluindo quadros de Friedrich. “Um tesouro imortal da verdadeira arte alemã pegou fogo. Eles eram chamados de românticos, mas, em essência, eram os mais gloriosos representantes dos nobres alemães em busca da virtude intrínseca ao nosso povo”, proclamou.
Caspar David Friedrich: 1774-1840 – Norbert Wolf
Nascido em Greifswald, no norte da Alemanha, Friedrich teve trajetória complicada. Na juventude, sua arte de exaltação à natureza e à comunhão desta com o homem era extremamente popular, compondo o acervo do rei Frederick William III, cujo filho de mesmo nome e futuro governante era chamado de ‘o romântico do trono’ e tinha Friedrich como artista favorito. Mas, à medida que a Europa se industrializou, suas pinceladas oníricas caíram em desuso, e o pintor morreu no esquecimento, até que uma grande exposição na mesma Alte Nationalgalerie, em 1906, reapresentou-o ao mundo.
Mas o prestígio renovado durou pouco: o apreço dos nazistas lançou novamente seu nome nas sombras. “Ao final da II Guerra, foi necessário um desvio de rota conceitual para que Friedrich se tornasse aceitável de novo”, aponta Ralph Gleis, diretor do museu e historiador da arte, no catálogo da exposição. Sua arte voltou a ser iluminada na década de 1970, quando exposições em Dresden e Hamburgo buscaram limpar a imagem fabricada pelos nazistas. Muitas de suas obras, ressaltou-se então, propalavam o oposto da ideologia ariana, ao colocar os alemães como humanos impotentes perante o meio, e não “super-homens”.
The Metropolitan Museum of Art: Masterpiece Paintings – Kathryn Calley Galitz
Isso ecoava uma tragédia de seu passado: aos 13 anos, Friedrich viu o irmão morrer enquanto tentava salvá-lo de se afogar num lago congelado. Mais tarde, retratou as paisagens com um misto de força e melancolia. “Friedrich amava a natureza e, com frequência, passava um tempo apreciando a vista na costa ou nas montanhas”, escreve a curadora Birgit Verwiebe, acrescentando que o pintor tinha um olhar especial para os fins de tarde, de forma a estudar as cores do crepúsculo.
Por causa dessa ambiguidade, a obra de Friedrich é revisitada sob várias perspectivas. Ele é reverenciado por artistas contemporâneos e ativistas que a reinterpretam sob uma chave ambiental, para alertar sobre os riscos das mudanças climáticas. Enquanto isso, em Berlim, as várias redescobertas de sua obra ao longo do tempo são dissecadas. A arte desse colosso alemão merece ser lembrada.
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2024, edição nº 2889