Nova biografia reafirma a mente visionária do iluminista Diderot
O intelectual francês se revelou à frente de seu tempo — e foi um gigante na defesa da liberdade
No início de 1774, Catarina II, imperatriz da Rússia, revelou-se maravilhada com a imaginação do homem mais extraordinário que já conhecera: Denis Diderot, intelectual francês do século XVIII, personagem central do Iluminismo e agora biografado pelo historiador americano Andrew S. Curran. Entre tantas histórias saborosas, Diderot e a Arte de Pensar Livremente conta que a reciprocidade foi verdadeira. O iluminista se entusiasmou com as conversas que manteve com a monarca russa durante sua estadia em São Petersburgo. Imaginava que suas ideias sobre educação e participação política estavam distantes de ser implantadas em sua França natal, em crise econômica e governada pelo absolutismo de Luís XV. Por isso, identificava na simpatia de Catarina, a Grande, a possibilidade de efetivar na Rússia um governo e uma sociedade baseados na razão, na ciência e na liberdade. Mas tal entusiasmo custou caro. Aos 60 anos, ele se ressentiu de ficar longe da família e viu a saúde se deteriorar na viagem entre Paris e a antiga capital russa. Não obstante o dinheiro e o prestígio que ganhou em missões como a curadoria do Museu Hermitage de São Petersburgo, o tempo mostrou que sua aproximação com a esclarecida imperatriz não foi suficiente para a concretização de seu projeto liberal.
Ao longo de toda a vida, Diderot (1713-1784) foi um defensor incansável da razão e da ciência como fundamentos do governo e da moral. Inspirado pelos britânicos Locke, Newton e Bacon, o polímata francês tratou sobre áreas variadas como física, filosofia, artes, sexualidade, anatomia, teatro e história. Sempre por meio de um efervescente raciocínio e exímia retórica. Sua amplitude intelectual fez com que Voltaire, um dos ícones do Iluminismo, vinte anos mais velho e mais famoso que Diderot, o admirasse na mesma medida em que o repreendia. Os dois trocavam cartas sobre a admiração que nutriam mutuamente. Mas, ao se conhecerem de fato, revelaram mais antipatia do que supunham. O autor de Cândido disse, em tom ácido, que Diderot era “um forno que queima tudo o que cozinha”.
Essa foi a grande dificuldade de Diderot: acertar o tempo de cozimento de suas ideias. Consciente disso, deixou para as gerações futuras parte de seus textos, descobertos postumamente. Os últimos, apenas em 1948. E muitos deles ganham em significado pelo modo como são apresentados por Curran. “Diderot argumentava que os artistas produzem suas melhores obras com o intuito de falar às futuras gerações, talvez mesmo depois da morte. Era com isso que ele próprio estava contando”, resume o autor.
Tal dificuldade ajudou a caracterizar Diderot como um radical em um país absolutista e profundamente católico, levando-o à prisão. Após ser encarcerado, entendeu que seu pensamento antidogmático deveria ser exposto em doses parcimoniosas, ora sob a moderação exigida em seu tempo presente, ora em pílulas para a posteridade. Essa é a chave para sua mais famosa obra, a monumental Enciclopédia, editada entre 1751 e 1772 e que contou em seu início com a participação de Jean D’Alembert. Nela, as posições liberais, anticlericais e ateístas de Diderot se misturam aos registros sobre temas ditos “neutros”, como a ciência e os ofícios. Como o próprio Diderot dizia, a Enciclopédia era como uma cápsula do tempo.
Em seus dias finais, ele recebeu ajuda de Catarina para ampliar seu conforto residencial em Paris. E depois de sua morte, em 1784, foi amplamente criticado e mal-entendido. No tumulto da Revolução Francesa, jacobinos raivosos com sua moderação reformista e reacionários contrários ao seu ateísmo pouco o compreenderam. Além de tratar da evolução das espécies antes de Darwin, da sexualidade antes de Freud e de criticar o tráfico de escravos ainda no século XVIII, Diderot legou algumas das propostas centrais dos revolucionários de 1789, como a nacionalização das propriedades do clero, a secularização das ordens religiosas e a implantação de uma educação científica. Contudo, o que a biografia de Curran nos revela é que Diderot foi, antes de tudo, um defensor radical da liberdade de pensamento contra o dogmatismo religioso, político, ideológico ou mesmo científico. Sua genialidade residia na consciência de que essa defesa seria uma tarefa infinita — e incontornável — para as gerações futuras.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772