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Nova biografia pinta Cleópatra de feminista e amplia polêmica sobre rainha

Livro se propõe a corrigir estereótipos, reforçando sua conversão em ícone da afirmação política

Por Raquel Carneiro Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h15 - Publicado em 17 mar 2024, 08h00

Linda e sensual, ao lado de seu leopardo de estimação, uma fria Cleópatra observa a morte de prisioneiros enquanto testa neles a eficácia de venenos. A cena retratada no quadro de 1887 do pintor francês Alexandre Cabanel resume a fama da rainha egípcia perpetuada ao longo de dois milênios: escrava da luxúria, cruel e emocionalmente instável, Cleópatra teria deixado um rastro de destruição em sua trajetória, desviando grandes homens do caminho da virtude, enquanto causava a morte de indefesos e desfrutava de riquezas desproporcionais em seu palácio. Da literatura às artes plásticas, passando pelo teatro de Shakespeare e o cinema do século XX, são muitas as representações da personagem sob esse mesmo olhar — adicionando ainda, se possível, elementos de feitiçaria.

POR TRÁS DO MITO - Busto em relevo feito entre III e I a.C.: mulher que desafiou as ideias de submissão
POR TRÁS DO MITO – Busto em relevo feito entre III e I a.C.: mulher que desafiou as ideias de submissão (DeAgostini/Getty Images)

Em meio a tantos estereótipos, a ensaísta americana Francine Prose se propôs uma tarefa complexa. Diante do material histórico esparso e de muitos relatos feitos por opositores, a autora separa o joio do trigo sobre a personagem no notável e enxuto livro Cleópatra: Seu Mito, Sua História, que está saindo no país pela Planeta. A começar pelo óbvio: boa parte do que se sabe sobre Cleópatra passou pelo filtro de homens romanos, que não só a desprezaram por ser uma mulher que desafiou as ideias de submissão feminina, como também por sua astúcia e teimosia, postura que dificultou a expansão imperial, atrasando em duas décadas o domínio de Roma sobre o Egito.

Ao lançar essa lupa sobre a personagem, a nova biografia não só reforça uma onda de pesquisas que buscam acessar brechas da verdade por trás de narrativas tidas como oficiais, mas também se impõe como um exemplar valioso entre os títulos voltados à soberana egípcia. No ano passado, a minissérie documental Rainha Cleópatra, da Netflix, causou furor ao colocar a atriz negra Adele James no papel da protagonista — até o governo do Egito pediu o boicote da produção assinada pela também atriz negra Jada Pinkett Smith. A série expôs ainda atitudes mais sóbrias da personagem, ao contrário do tom histérico dado pela atriz inglesa e branca Elizabeth Taylor (1932-2011) no filme de 1963. Julgada pelo machismo e pela xenofobia — os egípcios eram considerados seres inferiores pelos romanos —, Cleópatra, em pleno século XXI, vira o jogo para se firmar como um símbolo improvável de afirmação feminista e racial. “Ela era bem-educada, boa diplomata e poliglota”, disse a autora em entrevista a VEJA. “Cleópatra lidou com todo tipo de conflito interno; houve inundações, fome, guerras, desafios extremos para qualquer tipo de governante. E ela conseguiu, com alianças, atravessá-­los.” Entre esses parceiros oportunos estavam dois romanos proeminentes, o imperador Júlio César e, depois, o cônsul Marco Antônio, com os quais ela se relacionou e teve filhos. Por estratégia ou amor, o fato é que Cleópatra se manteve no poder no Egito por vinte anos após o conturbado governo de seu pai, Ptolomeu XII, transformando a capital, Alexandria, numa cidade vibrante e mantendo o país relevante e autônomo.

VISÃO MACHISTA - Elizabeth Taylor no filme clássico: fútil e histérica
VISÃO MACHISTA - Elizabeth Taylor no filme clássico: fútil e histérica (Hulton Archive/Getty Images)

Mesmo com tantos feitos, denuncia a autora, é a aparência física da rainha a maior obsessão dos detratores. Descrita como dona de beleza ímpar (nunca comprovada), Cleópatra não teria chegado tão longe naquele violento jogo político se não tivesse uma inteligência perspicaz e a firmeza exigida de monarcas. “O constante interesse na aparência dela é sintoma de julgamentos sexistas e raciais”, diz Prose. Cleópatra era macedônia por parte da família paterna, um indício de que teria traços brancos. Não se sabe, porém, quem foi sua mãe. Na época, o Egito era um reduto multicultural, com nacionalidades diversas — herança da ocupação de Alexandre, o Grande trezentos anos antes. A autora então crava que, sim, a rainha poderia ter sido negra, mistério que ainda não tem resposta. “Qualquer biógrafo de Cleópatra trabalha com poucos fatos e muita especulação”, explica Prose.

MISTÉRIO - Adele James em série da Netflix: a egípcia poderia ser negra?
MISTÉRIO - Adele James em série da Netflix: a egípcia poderia ser negra? (./Netflix)

Isso se aplica até ao mais antigo e famoso deles, Plutarco (46 d.C.-120 d.C.) — que, na passagem do século I ao II, escreveu sobre homens gregos e romanos proeminentes. Entre eles, Marco Antônio, tratado como vítima da manipulação de Cleópatra. Após uma investida militar malsucedida do casal, a rainha morreu — supostamente picada por uma cobra, em 30 a.C., aos 39 anos. Sua vida curta agora é revisada sob a ótica afirmativa atual. E assim, quem diria, a rainha passou de víbora a leoa feminista.

Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884

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