“A tão celebrada mestiçagem do Brasil foi inaugurada pelo estupro.” A frase é forte, e soa ainda mais pesada quando dita por um português. O escritor Valter Hugo Mãe é sincero em suas palavras, mas não consegue disfarçar a tristeza ao fazer a afirmação. Na semana passada, em visita a São Paulo para a 26ª Bienal do Livro, ele aproveitou para lançar presencialmente seu mais recente romance, As Doenças do Brasil (Biblioteca Azul), o oitavo de sua vasta produção literária — são mais de trinta obras. Editado em novembro passado, o título ganhou novos contornos com a emergência dos conflitos envolvendo, de um lado, grileiros, madeireiros, garimpeiros e traficantes; do outro, indígenas.
É a primeira obra do autor que se passa no Brasil, em um arquipélago fictício habitado por índios amazônicos, durante a colonização. Nas suas pesquisas, além de visitas a etnias indígenas na Amazônia e no Ceará, Hugo Mãe leu autores como Ailton Krenak e Davi Kopenawa para melhor entender a cosmogonia ameríndia. A obra é narrada por Honra, jovem índio filho de uma vítima de estupro perpetrado por um branco. Com dificuldades de se reconhecer como indígena e de ser aceito pelos demais, ele faz amizade com um negro libertado da escravidão e acolhido pela tribo.
A intenção do autor é narrar o violento encontro entre brancos e indígenas a partir do olhar dos nativos. “A globalização só será verdadeira com uma pluralidade de pontos de vista”, diz. Para Hugo Mãe, a violência da colonização calou e ainda silencia vozes e culturas de negros e indígenas. O escritor acredita que parte da tragédia social brasileira atual vem diretamente do passado, com as elites locais perpetuando o pensamento colonial de dominação dos menos favorecidos.
Adepto de uma linguagem trabalhada com esmero, Hugo Mãe é apontado como discípulo de José Saramago. Em comum com o Nobel português, ele também é econômico em sinais gráficos, inicia parágrafos em letras minúsculas e lapida frases como um ourives. O estilo ganha em plasticidade, mas às vezes a forma parece eclipsar o conteúdo. Assim como em Saramago, uma vez ultrapassado o estranhamento inicial com a linguagem, sobressaem histórias poderosas, personagens marcantes e temas profundamente humanos, como a solidão da velhice e o luto.
Aos 50 anos, Hugo Mãe é um dos mais bem-sucedidos autores lusitanos contemporâneos e já conquistou algumas das maiores distinções da língua portuguesa. Apaixonado pela cultura brasileira, ele se declara fã de MPB e literatura nacional. Fazendo galhofa, mas com a reverência de um admirador, disse que já quis se casar com Elza Soares e que hoje “paquera” a escritora Conceição Evaristo.
Com óculos de armação sóbria e sempre sisudo nas fotos, o autor revelou na Bienal um inesperado senso de humor. Ele levantou a plateia com frases como “Clarice Lispector é f***” — e soltou também um sonoro “Fora, Bolsonaro”. Habituado a visitar o Brasil, o português diz que desta vez ninguém quis acompanhá-lo na viagem. “A imagem que o país transmite é de uma catástrofe”, afirma. E finaliza afirmando que os portugueses veem o Bicentenário da Independência, no próximo 7 de setembro, com alegria: “Sobretudo pelo Brasil ter conseguido sua independência há tanto tempo. Poderia ter sido pior”. Eis um colonizador arrependido — mas que não perde a piada.
“Portugal foi um país opressor”
O escritor luso Valter Hugo Mãe falou a VEJA sobre literatura e os efeitos da colonização no Brasil e na África.
Como alguém nascido na Angola colonial e criado em Portugal, como é sua relação com o passado imperialista português? A presença branca na África e no Brasil foi atroz. A ocupação foi um processo histórico grotesco. Lamento que Portugal tenha sido uma nação opressora, mas minha geração sabe que a tirania existiu e tem reflexos até hoje. É preciso reconhecer isso para construir o futuro.
Os estudos críticos da colonização estão muito em voga. Como analisa essa nova perspectiva sobre o passado? Sempre ouvimos falar do homem pré-histórico, e isso era aceito sem questionar. Mas ao lado dele sempre existiu a mulher pré-histórica. O que está a acontecer à história neste momento é que as pessoas reclamam uma memória que também é feminina, negra, indígena. A verdade eurocêntrica não é mais inequívoca e isso é muito bom para nos abrirmos para novas perspectivas.
Seu livro fala da colisão brutal dos colonizadores com os nativos, incluindo a escravidão dos africanos. Em que medida ainda sentimos os efeitos desse choque? A diversidade tão glorificada do Brasil, a mestiçagem, que é uma espécie de inauguração do povo brasileiro, foi feita com estupros. Não podemos nos esquecer disso. Com o tempo, não só os corpos, mas as culturas foram se fundindo e se alterando. O resultado é uma exuberância racial e cultural, mas é uma riqueza complexa, desigual, difícil de abarcar toda a sociedade; há ainda muitos conflitos com que o Brasil precisa lidar.
Qual é sua relação com o português falado no Brasil, Angola e outros países lusófonos? De alguma forma, eu continuo a ser um português que vem buscar o ouro do Brasil, mas o ouro que me interessa é o vocabulário. A maturação da língua no Brasil e em outros países acontece mais rápido que em Portugal. Somos mais conservadores e o Brasil não tem problema em intrometer elementos novos. Isso é riquíssimo para alguém que gosta de escrever.
Publicado em VEJA de 13 de julho de 2022, edição nº 2797
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