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“Forças econômicas são mais poderosas que as militares”, diz Max Hastings

Autor do recém-lançado "Vietnã: Uma Tragédia Épica", o historiador fala sobre as lições que o conflito deu ao mundo

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 17 dez 2021, 17h31 - Publicado em 14 dez 2021, 09h00
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Aos 75 anos, o escritor e jornalista britânico Max Hastings tem se debruçado sobre os principais conflitos do início do século XX e lançado obras de fôlego sobre a Primeira Guerra (Catástrofe – 1914: A Europa vai à Guerra) e a Segunda Guerra (Inferno: O Mundo Em Guerra 1939-1945). Como correspondente, cobriu a Guerra do Vietnã para a BBC, mas demorou algumas décadas até mergulhar no tema. O resultado, Vietnã: Uma Tragédia Épica 1945-1975 (editora Intrínseca), saiu originalmente em 2018, mas acaba de chegar às livrarias brasileiras. Nesta entrevista, Hastings fala sobre seu método de trabalho, a maneira como suas lembranças do conflito deram colorido às descrições de batalhas, as lições que o Vietnã nos deixou e os erros que os Estados Unidos cometeram – e continuam cometendo.

A maioria dos livros que o senhor escreveu são focados na Segunda Guerra Mundial. Por que decidiu se dedicar a um conflito moderno? Como eu tinha uma associação pessoal com o Vietnã, como correspondente da BBC, as memórias eram muito fortes. Eu li muitos dos livros americanos sobre o conflito, e eles são apenas sobre os americanos. Uma das coisas que sempre me atingiu de forma mais forte foi que os americanos, até hoje, veem o Vietnã como uma tragédia americana. Mas foi, de forma avassaladora, uma tragédia vietnamita. O número de vietnamitas mortos é 40 vezes maior que o de americanos. Eu quis escrever um livro que focasse na experiência vietnamita. É claro que os americanos estavam lá e eram os principais agentes do conflito. Mas se você olhar para todas as reuniões que foram feitas para discutir a guerra, envolvendo Eisenhower, Kennedy e, depois, Johnson e Nixon, nunca nenhum vietnamita foi admitido, nem mesmo representantes do governo de Saigon. Eu senti que era hora de escrever um novo livro, mas a partir de uma perspectiva não americana.

O senhor cobriu a Guerra do Vietnã, de perto, no início de sua carreira como jornalista. De que maneira as memórias desse período contribuíram para o processo de escrita do livro? Ajudaram muito. A pessoa se recorda de tudo. Especialmente de algo que também foi sentido pelos americanos no Afeganistão e no Iraque. Quando você tem tanto poderio militar você não consegue realmente acreditar que não vai vencer aquela guerra. Eu lembro particularmente de um dia, em 1971, na base americana de Pleiku, durante o belo alvorecer vietnamita, com o céu de um vermelho vívido. Vi cerca de 60 helicópteros decolando em sucessão, um após o outro, em direção ao alvorecer. E isso em apenas uma base. É uma sensação de poder enorme. Eu tinha 25 anos na época e fiquei pensando: “como essas pessoas podem perder a guerra?”. Veja, esse é o problema. Quando você tem tanto poder, você se sente assim. Mas o erro básico que foi cometido de novo no Iraque, de novo no Afeganistão, é esquecer que embora exista um elemento militar nesses conflitos, no fim tudo se resume à política e a como as pessoas se sentem. Cada vietnamita, do norte e do sul, e representantes do governo de Saigon, não poderiam se levantar da cama de manhã sem se perguntar quando os americanos iam embora. Conversei com um importante general americano, Walt Boomer, que serviu três vezes no Vietnã. E cito suas palavras no final do meu livro. “Não aprendemos muito. Se tivéssemos aprendido, não teríamos invadido o Iraque”. E, todo o tempo, quando converso com o público militar em palestras, até hoje, falo sobre o quanto a dimensão política é o que mais importa. A não ser que você tenha um sistema político crível e um governo confiável, não há vitória. O norte venceu a guerra não porque eles eram melhores soldados. Primeiro, eles tinham a paciência de continuar. Segundo, porque eles tiveram baixas ilimitadas. Mas, mais importante, porque eles eram vietnamitas. Eles até podiam não gostar dos comunistas, mas eles eram vietnamitas. Enquanto os americanos não. Eles eram estrangeiros.

Hueys: imagem clássica de helicópteros de transporte de soldados
Hueys: imagem clássica de helicópteros de transporte de soldados (Divulgação/Divulgação)

Há uma noção de que a Guerra do Vietnã foi muito pior que outros conflitos, modernos ou antigos. Não. Eu passei a maior parte da minha vida estudando história. A Guerra do Vietnã foi muito ruim. Foi terrível para os civis. Mas a verdade é que todas as guerras são horríveis. A Guerra dos 30 Anos na Europa foi terrível, assim como os conflitos de libertação na América Latina. Quando comecei a escrever sobre conflitos, há 40 anos, eu me dedicava aos soldados. Depois, percebi que as maiores vítimas eram os civis. A proporção de civis mortos é sempre muito maior que a de soldados, e passei a me dedicar às vítimas. Se você tem 20 e poucos anos, é mais fácil demonstrar bravura. Porque você sabe que é capaz de fazer coisas incríveis quando é jovem. E carregar uma arma e atirar nos outros não é muito difícil. Eu passei a me sensibilizar especialmente com as mulheres. O que elas suportam em guerras, e eu falo muito sobre elas no meu livro sobre o Vietnã, é medonho.

O senhor fala no livro que o Vietnã foi um conflito sem vencedores, contrariando versões anteriores sobre o conflito. Durante anos, sempre tentaram justificar as razões para cada lado participar da guerra. Outra coisa que passei a acreditar fortemente ao longo da minha carreira como historiador é que as forças econômicas são muito mais poderosas que as militares nos resultados de conflitos. Em meu livro Catástrofe, sobre o início da Primeira Guerra, mostrei que os alemães estavam dominando a Europa pacificamente por meios industriais e econômicos. O erro gigantesco foi decidir ir à Guerra – que eles perderam. Uma das ironias do Vietnã é que os Estados Unidos perderam a guerra, mas seus valores foram absorvidos pelo País, mesmo com o governo socialista no poder até hoje. Se Ho Chi Minh visse o Vietnã hoje, com seus arranha-céus e a preocupação de 80 milhões de pessoas em ganhar dinheiro, ele ficaria horrorizado. Pensaria que isso é uma traição da revolução. De certa forma, foi um triunfo para os valores americanos. Os pais da geração atual foram capazes de resistir aos helicópteros americanos, mas os jovens de hoje não conseguem resistir a Johnny Depp, à cultura americana e a outras forças do capitalismo.

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1945: vítimas da fome catastrófica que varreu o norte do Vietnã
1945: vítimas da fome catastrófica que varreu o norte do Vietnã (Divulgação/Divulgação)

Vimos a influência que músicas, filmes e outros livros tiveram na percepção do público sobre a Guerra do Vietnã. Como desfazer alguns dos equívocos relacionados ao conflito? Todos provavelmente já assistiram a Platoon, que eu particularmente acho péssimo. Foi um dos filmes que ajudou a definir a concepção do público sobre a guerra. Platoon é muito melodramático, e sabemos que os americanos realmente fizeram coisas terríveis lá. Mas o que tento mostrar no livro é que embora uma parcela dos soldados tenham se comportado mal, a maior parte daqueles que foram ao Vietnã tinham intenções nobres e acreditavam que realmente estavam fazendo algo bom. O que geralmente falta em tudo que Hollywood faz é nuance. Somos todos misturas de coisas boas e ruins. Eu entrevistei centenas de americanos e li incontáveis relatos, narrativas e diários, e eles não eram todos monstros. Muitos foram realmente querendo fazer a diferença no mundo. Tento fazer um tributo a eles também. Qualquer livro que se define como o “definitivo” sobre um tema merece ser jogado no lixo. Porque não existe isso. O que todos fazemos, como historiadores, é tentar alcançar pedaços da verdade. Mas também tentamos entender que a verdade, como tudo que diz respeito aos assuntos, está no meio. Tento retratar a complexidade, e não demonizar as pessoas ou classificá-las como monstros ou heróis. 

Qual é o seu método de trabalho? Primeiro, tento ler aqueles que são considerados os melhores relatos da guerra que já foram publicados. E depois faço as entrevistas, o que é sempre algo extraordinário. Hoje, estou mais velho. Houve dias em que eu viajava por estradinhas na Carolina do Norte, no meio da noite, em um carro alugado em busca de um hotel antes de me encontrar com algum veterano. E eu me questionava se não estava ficando velho demais para esse tipo de coisa. Mas eu amo escutar velhas histórias de homens e mulheres. Nem todos contam a verdade, alguns inventam algumas coisas. Mas eu venho fazendo esse trabalho há mais de 40 anos e consigo identificar quem está mentindo. Também fiz entrevistas na China e na Rússia. Eu não falo russo, mas tenho um excelente pesquisador russo. E descobri que embora você não possa fazer entrevistas honestas na Rússia de Putin, você pode na Ucrânia. Então, conseguimos excelentes conversas com russos que serviram no Vietnã. Isso foi fascinante. Também conheci Merle Pribbenow, que trabalhou para a CIA no Vietnã durante anos. Ele se apaixonou pelo Vietnã e se casou com uma vietnamita. Desde o fim da guerra, ele vem traduzindo documentos e narrativas vietnamitas. Trabalhei com ele e usei muitas de suas traduções, especialmente de temas ligados ao partido comunista, porque há poucos documentos oficiais. Ofereci uma remuneração por seu trabalho, e ele recusou, dizendo que o trabalho era recompensa suficiente. Ele só queria mostrar o lado vietnamita da história. Ele traduziu milhares de páginas, literalmente milhares, para mim. Eu mandava um email para ele, no meio da noite, perguntando o que os norte-vietnamitas disseram sobre determinada batalha, e ele me respondia na sequência com dezenas de documentos. Fico me perguntando se ele dormia, porque fez isso inúmeras vezes. Outra coisa importante: eu sempre dou meus manuscritos para que outros historiadores leiam. Porque, é claro, você sempre comete erros, e é impossível não cometê-los. Depois que o livro foi publicado, recebi e-mails incríveis de pessoas me contando que se lembravam de uma ou outra batalha, apontando algumas incorreções. Além disso, a BBC colocou diversos dos vídeos originais que produzi para eles no Vietnã em um canal no YouTube, e recebi mensagens de pessoas que se reconheceram nas imagens. Sabemos que a internet pode corromper muito de algumas maneiras. Mas para um historiador como eu tem sido fantástico em globalizar meu acesso a fontes. A qualidade fundamental para um historiador é ter modéstia.

O chefe da polícia sul-vietnamita, Nguyen Ngoc Loan, executa um prisioneiro vietcongue durante a ofensiva do Tet em 1968
O chefe da polícia sul-vietnamita, Nguyen Ngoc Loan, executa um prisioneiro vietcongue durante a ofensiva do Tet em 1968 (Divulgação/Divulgação)

É possível traçar paralelos entre o Vietnã e outros conflitos modernos? Muitos americanos não sabem praticamente nada sobre o mundo exterior. Enquanto aqueles que moram em países menos importantes precisam viajar e conhecer outras partes do planeta, a maior parte dos americanos nunca saiu dos Estados Unidos e seu conhecimento sobre outros países e outras culturas é muito limitado. De certa forma, não podemos culpá-los. Se nós vivêssemos em um país tão rico e poderoso quanto os Estados Unidos, talvez nos sentíssemos da mesma forma. O mesmo vale para o aprendizado de outras línguas. Conversei com generais que participaram de outros conflitos e disse que era vital, se pretendiam ganhar aquela guerra, que mais tropas aprendessem a língua local. E tanto generais britânicos quanto americanos responderam que era inviável tirar soldados que ficariam poucos meses lá do complexo militar para aprender uma linguagem diferente que teria pouca serventia fora daquele ambiente. Isso aconteceu no Afeganistão, e também no Vietnã. Apenas uma pequena fração aprendeu a língua local. Lembro de uma conversa com um importante general americano, H.R. McMaster, que posteriormente serviu como conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Ele comandou tropas no Iraque e no Afeganistão e estava me contando sobre as vitórias militares antes de dizer que o problema era que não havia ninguém a quem se juntar depois. O que ele queria dizer é que não havia nenhum governo local, nada. E esse é um problema que se repetiu no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão. A não ser que exista um regime local que seja capaz de atrair o apoio da população local, você nunca chegará a lugar nenhum. Pode continuar vencendo batalhas por anos, mas não significará nada. O problema é o seguinte. Você pega esses jovens ocidentais e os ensina a usar armas e jogar granadas e coloca uniformes em todos eles. Você pode treiná-los a matar pessoas, mas não pode treiná-los a se dar bem com os estrangeiros. Se forem feitas intervenções como essas no futuro, é imprescindível criar conexões com a população local.

Que outras lições o Vietnã nos deixou? São muitas. Eu tenho um enorme respeito pelos Estados Unidos. Ainda é a maior nação da Terra e o que eles conquistaram nos últimos 250 anos é surpreendente. Mas a arrogância do poder, a crença de que os americanos podem fazer qualquer coisa, é muito perigosa. Por exemplo, escrevi sobre a crise dos mísseis em Cuba. Se você lê as transcrições das conversas de Kennedy com seus assessores, e são discussões muito inteligentes, verá que eles falam de aspectos militares, sobre como invadir Cuba, ou bombardeá-la de volta à Idade da Pedra. É sempre militar. Eles não falam nada sobre os direitos das pessoas em decidir qual governo elas preferem. Eles falam dos cubanos como prisioneiros de Fidel Castro, mas são incapazes de perceber que eles foram prisioneiros dos americanos por anos, desde a independência de Cuba. Eles preferiam ser “prisioneiros” dos comunistas, naquele ponto. Mas há apenas uma linha mencionando a necessidade de pensar em um novo governo para aquele país. Isso é loucura. 

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O senhor mencionou a internet e a maneira como ela favorece seu trabalho como historiador. E como jornalista? Como as coisas mudaram desde que o senhor trabalhou? Obviamente, ela mudou tudo. Mas eu sou muito grato por tudo que vivi. Consegui trabalhar como jornalista por muitos anos em um período em que os jornais estavam ganhando quantias enormes de dinheiro. Hoje, sabemos que os veículos ganham uma pequena fração do que já ganharam. Na primeira Guerra do Golfo, pude enviar 19 pessoas para cobrir o conflito. Hoje, teríamos sorte de mandar um profissional. Eu, assim como outros jornalistas da minha época, vivi aventuras incríveis – e alguém nos pagou para fazer isso. Fui muito sortudo. Agora, a sua geração terá que encontrar uma resposta para esse dilema da mídia. 

O senhor pretende escrever sobre os conflitos modernos? Falamos do Iraque, Afeganistão… Não acredito. Primeiro, porque essas histórias são muito deprimentes. Além disso, a escrita do livro sobre o Vietnã foi um enorme esforço para mim. Exigiu anos de pesquisa e muito trabalho. Pretendo continuar escrevendo, com certeza, mas serão livros menores, nada tão grande quanto este. Novamente, acho que caberá à sua geração discutir esses grandes temas. Eu já falei da Primeira Guerra, da Segunda Guerra, do Vietnã, da Guerra da Coreia.

Capa da edição brasileira do livro
Capa da edição brasileira do livro (Divulgação/Divulgação)

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