Florence Foster Jenkins (1868-1944) é uma personagem tão singular que a cinebiografia sobre a socialite, dirigida por Stephen Frears (A Rainha e Alta Fidelidade), saiu nos Estados Unidos apenas com o seu nome no título. Era como se dissesse que, uma vez pronunciado o nome dela, nada mais precisava ser dito. Surda para a afinação, mas rica, muito rica, Florence levou a cabo o plano de se tornar cantora lírica e chegou a alugar o suntuoso Carnegie Hall para um concerto que marcou o mundo da música. Infelizmente o filme, que estreia agora no Brasil, praticamente desperdiça uma boa história – sem falar na ótima atriz escalada para o papel principal, Meryl Streep.
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Florence: Quem É Essa Mulher? reúne um pouco de informação sobre a vida da socialite, mas consome suas quase duas horas de duração no episódio do Carnegie Hall, que foi o ápice da trajetória musical da socialite e seria sucedido por sua morte, apenas um mês depois. Pelo filme, vemos a procura da personagem por um professor e por um pianista que a acompanhem, sua investida na casa de concertos, a nervosa reação da plateia – dividida entre rir, abstrair e aplaudir o seu amor verdadeiro pela música – e a sua complexa relação com o segundo marido, vivido por Hugh Grant, unido a ela tanto pelo dinheiro que herdaria com a morte do pai como por um afeto que parece legítimo.
Não é um mau recorte, mas, além de a narrativa ser burocrática, para dizer o mínimo, deixa de fora muito da vida daquela que, para muitos, é a pior cantora da história. Uma soprano que destruía árias de Mozart com devoção. “Era não era apenas ruim, ela era ruim de coração”, chegou a dizer Meryl Streep em uma entrevista. A relação de Florence com a música era tão honesta e dedicada que ela angariou fãs como Cole Porter e David Bowie. O gênio do rock declarou ter tido a vida transformada por um disco póstumo de Florence Foster Jenkins lançado em 1962 – parte do legado da cantora, que sobrevive na forma de aperitivos no YouTube.
A relação de Florence com a música não parece a de alguém que busca a fama, mas a de uma pessoa que ama aquilo que faz e – já que o amor é cego – não percebe bem o que realiza. Filha de um fico banqueiro da Pensilvânia, Florence chegou a estudar piano na infância, mas foi desviada do instrumento pelos pais, temerosos do futuro que teria em uma área para a qual não demonstrava grande aptidão. O piano, no entanto, sustentaria Florence quando, ao fim do primeiro casamento, ela se veria sem apoio da família. Obsessão desde o início da vida, a música nunca ficou de fora da trajetória da socialite.
O casamento, aliás, já seria parte do seu plano de se forjar soprano. Florence saiu de casa não só para escapar ao clima ruim instalado com a morte da irmã, vítima de difteria aos 8 anos, mas também para perseguir a carreira de cantora. A união com o médico Francis Thornton Jenkins, no entanto, não deu a ela mais do que sífilis, que a deixaria careca e a faria consumir mercúrio, substância usada na época contra a doença. Uma biografia lançada recentemente levanta a possibilidade, não confirmada, de que o mercúrio tenha prejudicado a sua performance lírica. Mas mercúrio não parece suficiente para explicar o que acontece quando Florence abre a boca.
Foi o fracasso do primeiro casamento que a fez partir para Nova York, onde conheceria o segundo companheiro, o ator inglês St Clair Bayfield (1875-1967), que a ajudaria a realizar o sonho da música, com apresentações fechadas para amigos e conhecidos, a gravação de cinco discos de 78 rotações e o concerto histórico pouco antes da morte.
As apresentações fechadas se deram sobretudo no Clube Verdi, espécie de teatro fundado por Florence como parte de seus esforços para apoiar a música em Manhattan. O filme de Frears abre com uma apresentação no local e faz referência a um dos figurinos que se tornaram marca registrada da cantora: um vestido com asas pregadas nas costas, com o qual ela se enunciava como “Anjo da Inspiração”. A sequência inicial é ótima, mas o longa deixa a desejar tão logo ela termina.
Fantástica, a história de Florence Foster Jenkins já foi tema de diversas peças de teatro em diversos países, e inspirou um divertido filme francês, Marguerite, em cartaz no Brasil. Inevitável a comparação, é necessário dizer que Florence perde para Marguerite, que se baseia livremente na personagem para criar uma outra, uma burguesa ociosa e amante da música na Europa dos anos 1920, em meio às feridas da guerra e à efervescência das vanguardas. Há quem diga que Florence: Quem É Essa Mulher? é já um candidato a estatuetas do Oscar. Pode ser. Há muito tempo, o Oscar já deixou mesmo de ser parâmetro de excelência no cinema.