Apresentado na infância aos Doze Profetas de Aleijadinho que ornamentam o adro do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais, o mineiro Marcos Bernardes, escultor de 50 anos, cedo aprendeu a admirar o trabalho do gênio barroco. Escultor de obras sacras, Bernardes mostra em suas peças influência de Antônio Francisco Lisboa (1738-1814), o Aleijadinho que tanto admira. As imagens de santos em madeira são pródigas em expressividade, olhos amendoados, bocas entreabertas e mãos detalhadas. São qualidades que o tornaram conhecido e muito solicitado por colecionadores, afeitos a pagar somas generosas.
Serviu também como atalho para a impostura de criminosos. Em meados de 2014, Bernardes descobriu o que se tornaria um tormento: um São Francisco talhado por ele seis anos antes estava em exposição em Brasília apresentado como um autêntico Aleijadinho. Houve algum escândalo, mas pouco foi feito para reparar a injustiça. Recentemente, ele diz ter identificado outras obras suas em sites de leilões, entre as quais uma Nossa Senhora das Mercês e um São José de Botas, “atribuídas” ao artista barroco e vendidas por mais de 300 000 reais. “É um desrespeito comigo, com o Aleijadinho e com quem comprou ou vai comprar a obra”, diz o escultor.
Episódios como os que atingiram Bernardes alimentam, agora, um bom movimento. Um grupo de peritos federais sugeriu ao deputado Felício Laterça (PSL-RJ) um projeto de lei para mudar a tipificação de bandidagem envolvendo falsificações de obras de arte. O projeto, em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, propõe a transformação de assinatura falsa em crime contra o patrimônio cultural brasileiro, com pena de cadeia de um a três anos.
O esquema de que foi vítima o mineiro é conhecido. Um comprador adquire uma escultura de Bernardes, que sempre assina seu nome em locais visíveis, e depois a revende para um terceiro. A assinatura é removida e a peça, envelhecida. Às vezes, até recebe um outro elemento enganador, como um pedestal antigo. A obra é então “autenticada” por um especialista, que emite certificado. De posse do documento, é levada a exposições, para que se imprimam nela outros selos de autenticidade. Depois disso, passa a ser oferecida em sites de leilão.
Desde que surgiram, as casas de leilões virtuais descentralizaram o mercado de artes, antes restrito ao eixo Rio-São Paulo. Mas houve, paralelamente, aumento de crimes de contrafação. Trata-se, a rigor, de estelionato, a manjada venda de gato por lebre. A investigação cabe a Polícia Civil, mas precisa haver denúncia da pessoa lesada na compra. É comum, contudo, que os envolvidos na transação aleguem agir de boa-fé, alheios às falsificações. “Em geral, as investigações não avançam”, diz Ivan Roberto Ferreira Pinto, chefe do Setor Técnico Científico da Polícia Federal no Rio de Janeiro. “Os bandidos nadam de braçada.” É contaminação que subtrai investimentos do mercado de arte.
A lei levada à Câmara representa avanço, mas não significa obstáculo intransponível para malandros. “A criação de uma lei não resolverá o problema”, diz Heloisa Seelinger, guardiã do espólio de seu avô, o pintor, desenhista e caricaturista Helios Seelinger (1878-1965). “É preciso haver nela dispositivos que criem meios de autenticação, de emissão de laudos e formação de peritos científicos.” É o que fazem países europeus e os Estados Unidos na proteção das artes. Não é escudo de total proteção contra falsários, mas é um modo de evitar o pior dos mundos no universo das artes: o risco de não se distinguir mais o autêntico da cópia infame.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772